O Partido Socialista usa o convidado de honra para as celebrações de “Abril” para levantar dúvidas sobre a justiça na acusação de outros governantes socialistas, e em especial do ex-primeiro ministro
Porque é que um ex-presidiário da corrupção é o convidado de honra das comemorações do 25 de Abril na Assembleia da República? A razão é muito simples: porque é socialista e permite ao partido com o mesmo nome passar a mensagem que lhe interessa.
Para os socialistas não há verdades absolutas, só há verdades relativas a um contexto, e a sua verdade que querem promover com a presença de Lula é a de que houve acusações a governantes da mesma cor que se revelaram falsas, e que isso pode acontecer noutro país onde o socialismo governa, como Portugal.
Desta forma, o Partido Socialista usa o convidado de honra para as celebrações de “Abril” para levantar dúvidas sobre a justiça na acusação de outros governantes socialistas, e em especial do ex-primeiro ministro José Sócrates. É por esta razão oportunista que o PS quer Lula no 25 de Abril e para isso aproveitou o ingénuo convite de Marcelo ao Presidente do Brasil.
Claro que nem Lula nem Sócrates são inocentes e ambos possuem aquele sentimento de impunidade e arrogância de quem se julga “dono disto tudo”, mas em Portugal há muito que os socialistas tentam passar a ideia de que o primeiro foi injustamente preso como meio de atenuar os efeitos da imagem provocada pela prisão do segundo.
Note-se que isto não significa que o interesse do PS seja reabilitar os nomes de Lula ou de Sócrates. Os dirigentes socialistas não estão preocupados com os dois uma vez que um não é português e o outro já saiu do partido. O convite a Lula da Silva visa apenas contribuir para a reabilitação dos próprios socialistas perante os portugueses que não esquecem Sócrates e a falência do país provocada pelo PS (neste último caso Costa aposta também nas ditas “contas certas”).
O que os socialistas querem essencialmente é separar o PS dos efeitos negativos de Sócrates e ilibar de vez o partido e os seus dirigentes de qualquer responsabilidade pelas trafulhices e pelas dificuldades causadas pela bancarrota, que aliás nunca assumiram publicamente.
Esta, aliás, foi a lógica seguida nas defesas arrebatadas do governo de Sócrates que muitos socialistas fizeram no parlamento na altura da prisão do ex-primeiro ministro. O objectivo nunca foi defender o ex-primeiro ministro corrupto, mas apenas safar o PS das acusações de “quadrilha de ladrões” e não comprometer o futuro do partido. Os exemplos de outros partidos socialistas europeus, como o italiano que desapareceu depois da condenação do seu dirigente e primeiro-ministro Betino Craxi, assustaram seriamente os dirigentes relativamente ao seu futuro.
Ana Catarina Mendes, João Galamba ou Pedro Nuno Santos, entre tantos outros, empenharam-se muito em defender o governo Sócrates na Assembleia da República. Não por causa do ex-primeiro ministro, mas para garantir que não perderiam acesso a lugares políticos. E a táctica funcionou, como se pode ver pelos cargos de governação que alcançaram.
O presidente da Assembleia da República Santos Silva também quer a presença de Lula da Silva na assembleia a 25 de Abril, mas por uma razão diferente. Para ser eleito presidente em Portugal precisa dos votos da esquerda radical. Por isso recusou que o parlamento recebesse a exposição que denunciava as barbáries do comunismo e do nazismo, alegando que provocaria divisões, mas já não teve pruridos em provocar as mesmas divisões com o convite a um ex-presidiário da corrupção como Lula apoiado pela mesma esquerda radical. Com a vantagem adicional de poder usar o tema e os respectivos diálogos com o Chega para continuar a desviar a atenção das “barracadas” da governação socialista que se acumulam há um ano. A ética republicana no seu melhor.
Lula e Sócrates: dois amigos com muitos processos
Os processos de Lula e Sócrates têm algumas semelhanças. Ambos começaram em 2014 e em ambos os ex-governantes foram presos – Lula foi condenado em diferentes instâncias legais e esteve preso 580 dias, Sócrates esteve preso preventivamente 288 dias – no âmbito de megaprocessos cujo resultado actual é desapontante e torna ainda mais justificadas as críticas ao funcionamento dos sistemas judiciais nos dois países.
No Brasil, o processo “Lava-jato” não manteve na prisão nenhum político ou empresário relevante ao fim de 9 anos. Até mesmo o Governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, condenado a 45 anos de prisão, já conseguiu sair. Há ainda 27 processos a decorrer – 24 inquéritos e 3 ações penais – mas estão parados porque os juízes pediram mais tempo para os analisar.
Em Portugal, a “Operação Marquês” abrangia inicialmente 188 crimes e continua a decorrer. Dos 28 arguidos iniciais – dezanove pessoas singulares e nove coletivas – apenas Armando Vara e Ricardo Salgado foram condenados. Entre os restantes, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro foram “safos” de acusação pelo juiz Ivo Rosa.
Mas há diferenças importantes. As condenações de Lula foram anuladas com base em questões técnicas de jurisdição e processuais pelo Supremo Tribunal Federal (STF), numa votação de 8-3 (pode ver aqui). As razões apontadas foram a realização do julgamento em Curitiba quando os factos dos processos ocorreram em diferentes distritos federais e a acusação se ter cingido aos danos causados à Petrobrás (por erro não incluiu outras entidades públicas também prejudicadas), tendo a maioria dos juízes do STF considerado não haver uma relação de causa-efeito entre algumas acusações feita a Lula e os danos causados especificamente àquela empresa (sobre outros danos nada diz).
Note-se que o STF nada referiu sobre o conteúdo das acusações e que não ilibou Lula, ao contrário do que os seus apoiantes pretendem, tendo devolvido alguns dos processos aos tribunais inferiores para que se iniciassem de novo. Mas o tempo usado e a decisão do STF para que os processos voltassem ao início levou à prescrição de duas das principais acusações a Lula.
Não deixa de ser estranho que o mesmo STF que primeiro validou a concentração dos processos em Curitiba venha mais tarde mudar de ideias e argumentar que deveriam ser distribuídos pelos distritos federais onde os factos ocorreram, usando esse argumento para os anular. Como também é estranho que processos associados a uma subsidiária da Petrobrás sejam considerados como respeitantes a outras entidades e por isso não sejam considerados pelo juiz relator do STF como estando abrangidos pela formalização da acusação.
A verdade é que foi a anulação dos processos que permitiu a Lula candidatar-se nas eleições e ser novamente presidente, ficando na prática fora do alcance da justiça. No total houve 26 inquéritos a Lula associados a corrupção no valor de quase 20 milhões de reais e várias condenações que totalizaram 26 anos de prisão. Dos 10 principais processos que resultaram em acusação, 2 foram anulados e depois prescreveram, 5 foram anulados e/ou encerrados pelo STF e em apenas 3 houve absolvição.
Entre os processos cuja prescrição foi facilitada pelo STF estão as obras no apartamento triplex de Guarujá, em que Lula foi condenado por três instâncias judiciais, incluindo o Superior Tribunal de Justiça, por ter recebido dinheiro de um empreiteiro; e a propriedade de Atibaia, registada em nome do filho e cuja aquisição Lula nunca conseguiu explicar. Entre os processos que foram encerrados pelo STF estão as doações financeiras e em terrenos feitas ao Instituto Lula. Refira-se que Lula foi denunciado por várias pessoas, entre as quais o seu Ministro das Finanças, António Pallocci, e o empresário Marcelo Odebrecht.
No caso de Sócrates ainda não houve qualquer julgamento apesar de já terem passado 9 anos e as acusações estarem próximas de prescrever (o mesmo acontece com o seu amigo Santos Silva), o que é difícil de compreender e de aceitar. Sócrates está acusado por 31 crimes de corrupção praticados após 2006, e de causar danos aos portugueses no valor de 21 milhões de euros.
A hipótese de o governo estar a colaborar implicitamente com a defesa de Sócrates na tentativa de atrasar os processos é plausível. A lei que prevê o sorteio de juízes para julgar os crimes mais complexos foi aprovada em 2021 e está há dois anos para ser regulamentada pelo governo. Entretanto, a defesa de Sócrates já recusou os juízes apresentados em 23 ocasiões aproveitando-se do facto de a lei não estar regulamentada.
Esta abordagem é também consistente com a explicação da presença de Lula nas cerimónias do 25 de Abril em cima apresentada. Nesse caso, o resultado desejado pelos socialistas seria a sua prescrição, tal como aconteceu em alguns processos de Lula, evitando-se a condenação e reforçando-se a dúvida sobre a justeza da acusação e prisão.
Se os socialistas achassem que Sócrates é inocente, como defenderam durante anos, quereriam que o julgamento já se tivesse iniciado há muito. Mesmo que o afirmem, a actuação do governo no caso do sorteio dos juízes indica precisamente que querem o contrário, e todos sabemos como os socialistas são peritos em dizerem uma coisa e fazerem outra. Basta pensarmos em Centeno e no investimento público que anunciou e nunca cumpriu ou no recurso sistemático às cativações.
Por fim, não se entenda deste texto que Portugal não deva convidar o Presidente do Brasil a visitar o país. Pelo contrário, é perfeitamente natural que isso aconteça. O Presidente do Brasil, seja ele quem for, será sempre bem vindo ao nosso país. O que não é natural é que um ex-presidiário da corrupção, um amigo de Putin que responsabiliza a Ucrânia pelo conflito, e de Xi Jinping e dos piores ditadores latino-americanos e de outros pontos do Mundo, tenha lugar de honra nas comemorações de um dia que deveria defender a democracia e o primado da lei. Colocá-lo nas comemorações do 25 de Abril como se fosse um arauto da liberdade mostra bem a visão que alguns têm do significado desse dia, e mostra ainda mais para onde querem levar Portugal.
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