Se há erva daninha na nossa democracia não é tanto a tolerância para estes pecadilhos menores dos ministros, mas a aceitação apática de que o Estado pode cair em cima dos cidadãos e dos contribuintes.
Há uns anos também tive uns lapsos. Aproveito para confessar tudo. Estava a mudar de contabilista e não apresentei aos sacrossantos serviços de finanças a declaração trimestral de IVA dos recibos verdes. Na verdade, nem me lembrei disso. Não tinha passado nenhum recibo naquele período e, logo, não havia nenhum IVA a pagar ao Estado. Em suma: eu não devia nada ao Estado e não apresentei o papel devido informando que nada devia ao Estado. O dano para o Estado em termos financeiros foi, como veem, gravíssimo – eu devia zero ao Estado e paguei zero ao Estado.
Mas o Estado, esperto, não passa por cima de fraudes fiscais tão avultadas como a minha. Só dei pelo meu incumprimento quando recebi o aviso de que tinha uma multa de 100€ para pagar por falta de entrega da declaração trimestral de IVA, embrulhada em ameaças várias de me obrigarem a fazer o pagamento do IVA em dívida (nenhum) mais uma boa porção de juros. Tudo no total estonteante de zero euros. O novo contabilista apresentou a declaração em falta e eu lá paguei a multa de 100€ por não ter lesado o Estado em absolutamente valor nenhum.
Uma amiga minha também teve há uns tempos outro lapso. No ano passado às tantas mudou o layout do site da AT e quando a dita amiga fez a declaração trimestral do IVA deu-lhe mensagem de erro. Pôs o valor bruto do seu trabalho noutro campo, para experimentar, e não deu erro nenhum. Supôs que havia ficado tudo bem. Imprimiu a guia de pagamento do IVA e pagou – tudo sem saber que naquele momento se havia tornado uma sucedânea de Al Capone em escala diminuta.
Meses depois recebeu notificação para pagar novamente o valor total do IVA – que para a AT não estava pago – mais juros. Foi a uma repartição de finanças, os funcionários ajudaram, simpáticos e solícitos, e baixinho declararam que a mensagem de erro inicial era um erro do próprio site. Terminou fazendo uma reclamação graciosa e nove meses depois o Estado generosamente reconheceu que nada lhe era devido. Entretanto multiplicaram-se as citações ameaçadoras para pagar o que (não) devia, os juros acumulavam-se, nas finanças pressionavam para pagar mesmo se em prestações e pedir de seguida a devolução do dinheiro.
Lembrei-me destes lapsos que não prejudicaram o Estado português – ninguém não pagou o que devia de impostos – a propósito do lapso de Siza Vieira ser ministro e ao mesmo tempo gerente de uma empresa sua. E a seguir o secretário de Estado da Juventude e do Desporto, que acumulou a gestão da produção de mirtilos com a secretaria de Estado.
Dois lapsos de governantes que provavelmente também em nada lesionaram o Estado e os contribuintes. (Ainda que seja estranho e inquietante um ministro constituir uma empresa imobiliária no dia antes de tomar posse.) A tentação de facto é ser pragmático como o primeiro-ministro António Costa, resolver as incompatibilidades e não perder mais tempo com o assunto.
Mas, mas, mas. Ora sucede que quando os meros contribuintes têm lapsos inócuos que não trazem dano ao estado, não há nenhuma benevolência nem pragmatismo nem se passa à frente. Há trabalheiras (muitas), multas, pagamentos que se fazem sabendo que não são devidos, cartas e ameaças das finanças, paz de espírito destruída durante meses.
Se há erva daninha nesta nossa democracia de quarenta anos não é tanto a tolerância para estes pecadilhos menores dos ministros e secretários de Estado, mas sim a aceitação apática de que o Estado pode cair em cima dos cidadãos e dos contribuintes com todo o poderio, a propósito de ridicularias, ao mesmo tempo que tudo é perdoado nos políticos eleitos e na administração pública.
Chegamos aos extremos de a AT perseguir empresas que se atrasam no pagamento do IVA mesmo em casos que a AT é devedora dessas empresas e demora eternidades a pagar e faz exigências de várias espécies (tentando que as empresas não as consigam acomodar e desistam). Um caso de má prática médica num hospital público é julgado num tribunal administrativo, que é muito mais suave para a instituição pública que os tribunais civis são para os hospitais privados para o mesmo ato de má prática. As instituições públicas estão isentas de aplicar as regras de higiene e segurança no trabalho que, falhando no setor privado, despejam multas de milhares de euros em cima das empresas.
Não há nada mais insalubre que isto: complacência acrítica com tudo o que é público, como se o Estado fosse o recipiente de um direito divino que não se pode contestar, conjugada com esfregar de mãos de contentamento da maioria das pessoas de cada vez que há um atropelamento estatal de um privado, indivíduo ou empresas.
Não há solução, claro. Não se pode obrigar um povo a tornar-se de súbito exigente com o poder político e burocrático. Eu própria acho excessivo que governantes se devam demitir por lapsos tontos. Mas por outro lado quero os meus cem euros de volta.
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