Segundo o Tribunal Constitucional, o prazo de prescrição do crime de corrupção começa a contar quando há uma promessa e não com a entrega de dinheiro. O Supremo Tribunal de Justiça diz que tal leitura abre a porta à impunidade.
Foi em Fevereiro de 2019 que o Tribunal Constitucional (TC) decidiu que o prazo de prescrição no crime de corrupção se inicia a partir do momento da promessa de uma vantagem e não com o pagamento. O acórdão 90/2019 foi o grande argumento utilizado pelo juiz Ivo Rosa para declarar como prescritos os três crimes de corrupção passiva imputados a José Sócrates. Porém, uma leitura atenta da decisão do TC mostra que a mesma foi tudo menos pacífica, com a juíza Fátima Mata-Mouros (que votou vencida) a declarar que o acórdão constituía uma "inflexão" e um "desvio" na posição até então assumida pelo Constitucional.
O acórdão do Tribunal Constitucional surgiu uma semana após o início da fase de instrução da Operação Marquês (que começou a 28 de Janeiro de 2019). Os juízes do Palácio do Ratton foram confrontados com um recurso vindo do Supremo Tribunal de Justiça sobre o início da contagem dos prazos de prescrição no crime de corrupção.
O colectivo, formado por Cláudio Monteiro (antigo deputado do PS entre 1995 e 2002, depois de um acordo entre os socialistas e o Movimento Humanismo e Democracia), Teles Pereira (antigo director do Serviço de Informações e Segurança) e Fátima Mata Mouros (a primeira juíza de instrução criminal no Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa), aceitou pronunciar-se sobre a questão, mas com o voto contra de Fátima-Mata Mouros.
O entendimento que prevaleceu por maioria foi o de, como salientou Ivo Rosa na decisão instrutória, "julgar inconstitucional, por violação do princípio da legalidade criminal, os artigos 119.º, n.º 1 e 374.º, n.º 1, ambos do Código Penal, quando interpretados no sentido de que o prazo de prescrição do crime de corrupção ativa é contado a partir da data em que ocorra a entrega de uma dada vantagem ao funcionário, e não a partir da data em que ocorra a promessa dessa vantagem".
Ou seja, o Constitucional decidiu alterar por completo a interpretação que, até à data, vinha a ser feita, até pelo Supremo Tribunal de Justiça, que tinha sido confrontado - através do recurso de um arguido - com a mesma tese, a qual rejeitaram, afirmando que, a ser assim (isto é, a contagem do prazo começa na promessa de vantagem) "permitir-se-ia que os arguidos continuassem a praticar actos de execução do crime, continuando a pagar e a receber subornos em perfeita impunidade. Correr-se-ia o risco, no limite, de o crime já estar prescrito ainda antes da sua consumação material ou terminação, o que, obviamente, precludiria toda e qualquer possibilidade de perseguição e punição do criminoso, conduzindo não só à impunidade, como ao total descrédito do Estado de direito, em particular dos tribunais e da administração da justiça. Certo é pois que o prazo prescricional dos crimes de corrupção objeto dos autos só corre a partir da data do pagamento dos subornos ou do ato ou omissão contrário aos deveres do cargo do agente passivo do crime no caso de corrupção passiva antecedente. (…)".
Exemplo: se hoje, 11 de Abril, alguém prometesse a um ministro pagar-se 100 mil euros por uma decisão, este acordo fosse cumprido no dia 11 de Maio (com um despacho, por exemplo) e o ministro começasse a receber o dinheiro a 11 Setembro até Dezembro, o prazo de prescrição não começaria a contar neste último intervalo, mas sim a 11 de Abril, segundo o entendimento do Constitucional, que vingou na Operação Marquês.
O acórdão do TC foi o grande argumento do juiz Ivo Rosa para declarar como prescritos os três crimes de corrupção imputados a José Sócrates e que tinham a ver com o Grupo lena, Grupo Espírito Santo e o empreendimento turístico de Vale do Lobo. O magistrado judicial declarou que, atentas as datas indicadas na acusação para os pagamentos, quando foi aberto o inquérito (em Julho de 2013) os crimes já estavam prescritos.
Inconformada com a decisão dos seus colegas, a juíza conselheira Fátima Mata Mouros deixou uma contundente declaração de voto, considerando que os seus colegas promoveram uma "inflexão" e um "desvio" ao entendimento que tinha sido feito, até à data, pelo Tribunal Constitucional. "As questões de constitucionalidade material – no caso não se coloca nenhuma questão de constitucionalidade orgânica ou formal – não se ocupam de saber se as normas foram criadas em conformidade com o texto constitucional, antes visam apurar se as normas podem subsistir à luz da Constituição. E essa análise não deve ser confundida com a "melhor" interpretação dos preceitos legais", escreveu a juíza.
Considerando que os seus colegas estavam a exorbitar as funções do Tribunal Constitucional: "A vocação funcional de um tribunal com competência específica para administrar a justiça em matérias jurídico-constitucionais é a apreciação da constitucionalidade de normas (ou interpretações normativas). Saber se determinada interpretação normativa é conforme à Constituição não se confunde, porém, com a determinação e interpretação do direito ordinário aplicável ao caso. O Tribunal não pode incorrer nessa confusão, sob pena de se apropriar do controlo da interpretação de todas as normas inseridas em áreas do Direito limitadas pelo princípio da tipicidade, já que é sempre possível divergir da interpretação dada a uma norma legislativa. Foi o que se passou na presente decisão".
Fátima Mata-Mouros considerou ainda que a decisão em causa "desfigurou" a a função do Tribunal Constitucional "no quadro da repartição de competências entre tribunais, designadamente entre o Tribunal Constitucional e as demais ordens jurisdicionais, transformando-se numa ‘quarta instância’, que não se enquadra nas competências próprias que a Constituição lhe reserva. Não cabe ao Tribunal Constitucional definir qual a interpretação do direito ordinário que deve ser seguida pelas ordens jurisdicionais competentes. A competência específica do Tribunal Constitucional é a interpretação da Constituição. Pertence aos tribunais comuns a interpretação do direito ordinário".
O texto de vencido de Fátima Mata Mouros terminou com uma declaração premonitória: "O desvirtuamento das funções do Tribunal Constitucional, para além de violar o princípio da conformidade funcional das competências do Tribunal Constitucional, tem um efeito expansivo que não pode ser encorajado. A confusão entre o controlo da conformidade constitucional das normas aplicadas e o contencioso de decisões judiciais pretensamente violadoras da Lei Fundamental, alimenta o recurso à jurisdição constitucional a pretexto de falsas questões de constitucionalidade que, apesar de inexistentes, permitem o protelamento das decisões judiciais relativas a verdadeiros atentados à Constituição, com custos irreparáveis para o prestígio da Justiça e do Estado de Direito".
O juiz de instrução criminal decidiu mandar para julgamento o ex-primeiro ministro José Sócrates, o seu amigo e empresário Carlos Santos Silva, o ex-ministro Armando Vara, o banqueiro Ricardo Salgado, todos por crimes económicos e financeiros, mas deixou cair as acusações de corrupção e fraude fiscal e ainda o ex-motorista de Sócrates João perna por detenção de arma proibida.
Dos 28 arguidos, Ivo Rosa pronunciou apenas estes cinco e ilibou, entre outros, os ex-líderes da PT Zeinal Bava e Henrique Granadeiro, o empresário Helder Bataglia e o ex-administrador do Grupo Lena Joaquim Barroca.
Dos 189 crimes que constavam na acusação, num processo que começou a ser investigado em 2013, só 17 vão a julgamento, mas o procurador Rosário Teixeira, responsável pelo inquérito, anunciou que ia apresentar recurso da decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa.
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