Se já construímos um império há 400 anos, já tivemos o milagre de Fátima e até ganhámos o Europeu de futebol, porque não acreditar que os grandes calotes são afinal da responsabilidade do credor?
Na gíria popular, um pequeno devedor é normalmente considerado um pilha-galinhas, um devedor médio, um vigarista e o grande devedor um espertalhão. E na verdade, a sabedoria popular está quase sempre certa, tanto que o credor, especialmente se for um Banco, alinha pelo mesmo diapasão. No caso do pilha galinhas, nem justifica pedir a sua insolvência, bastando estragar-lhe a vida com as inibições do contumaz, o vigarista vai para a insolvência com a penhora do património e o espertalhão vai restruturar a dívida, pois como esperto que é, património não tem.
Esta história já todos conhecemos. O que é novidade no assunto do BES ou Novo Banco (se é que ainda há novidades neste assunto) é que afinal, os grandes devedores, os tais espertalhões, confessam – pelo menos os próprios acham – que de espertos, afinal não têm nada. Na Comissão Parlamentar de Inquérito, bem vistas as coisas, resulta segundo a sua versão, que foram eles os enganados pelo BES. Por isso, se do ponto de vista material, não pagam ao Banco porque não têm dinheiro (ao luar, claro, como também diz o povo) então pelo prisma moral muito menos, porque se têm dívidas, é porque foram levados ao engano pelo próprio Banco.
Este peregrino modo de justificar o impensável, só em Portugal não nos poderá surpreender. De facto, se com uma população minúscula já construímos um império há 400 anos, já tivemos o milagre de Fátima e até ganhámos o Europeu de futebol, porque não acreditar que as pequenas e médias dívidas continuam a ser culpa dos devedores, mas os grandes calotes são afinal da responsabilidade do credor. Então estas grandes dívidas, não surgiram porque foi o credor que insistiu em emprestar o dinheiro e até convidou o futuro caloteiro para um almoço de convencimento? Não foi o credor que ordenou ao devedor que investisse em maus negócios? E ainda por cima, quando tudo começou a correr mal, recusou-se a dar-lhe mais tempo e mais dinheiro, de modo a que um dia pudesse finalmente pagar a dívida, se possível sem juros ou até com juro negativo. E não é que há bons exemplos de que isto teria sido possível. Então não é verdade que Portugal só acabou por pagar os empréstimos da monarquia contraídos nos finais do Séc. XIX em 2000 e a Rússia muito mais recentemente, já com Putin, é que pagou a dívida rejeitada pelos bolcheviques em 2017?
Qualquer atitude de bom senso, também levaria a que Luís Filipe Vieira, Moniz da Maia, Comendador Berardo, o sujeito da Ongoing e sobretudo a família Espírito Santo, dispusesse – com mais uma injecção de 4 mil milhões – de algum prazo razoável, por exemplo até 2114, para regularizar a dívida e recuperar o BES? Não tivesse este sido intervencionado e tudo poderia ter sido assim, no país do milagre de Fátima.
Mas mais curioso que tudo isto, é o aparecimento recente, agora à luz do dia e sem a capa do embuçado, de uma figura já conhecida, mas habitualmente não assumida, sobretudo pelo próprio, uma pessoa que figura ostensivamente num negócio ou empresa, em vez do verdadeiro interessado ou responsável, ou seja, o Testa de Ferro. Em alguns casos por voluntária confissão, outros por natural dedução do (pouco) que disseram ou se lembravam, afinal os empréstimos também lhes eram concedidos, não para qualquer investimento por eles pensado, mas para adquirirem participações em empresas, que o próprio Banco emprestador não poderia, não queria ou lhe não era conveniente que adquirisse em seu nome.
Depois, esses activos adquiridos, azar dos Távoras, desvalorizaram 90%. Claro que, moralmente, os devedores testas de ferro, entenderam, na lógica de “empresários de tabacaria” (expressão agora tão na moda) que não seria o seu património, eventualmente obtido em negócios – talvez não menos duvidosos, mas pelo menos não tão palermas – que iriam responder por dívidas assumidas na condição de testas de ferro.
Lembro-me de há uns anos ter perguntado a um colega que tipo de assuntos mais lhe pediam na altura os clientes, ao que respondeu: É pá, mais de 50% é para esconder património. E para esse desiderato (um imóvel tem de ter um dono, que maçada…) entra de novo, necessariamente, o testa de ferro, que pode ser um amigo, um empregado, parente afastado ou até o procurador numa offshore. Tudo depende de quanto é que existe para esconder.
A confusão instalada já é tal, que até tivemos recentemente um despacho de pronúncia, em que um testa de ferro passou a corruptor do beneficiado e autor do esquema, tendo com essa decisão (pelo menos enquanto não for revertida) tornado a função de testa de ferro, ainda muito mais arriscada do que já era até então. Será a partir de agora previsível um aumento generalizado dos honorários de testas de ferro, em função do risco e perigosidade que passa a possuir tão nobre profissão.
No nosso ordenamento jurídico, existem as figuras da co-autoria e da cumplicidade, mas de facto, por enquanto, ainda não é explicita a qualificação jurídica de testa de ferro. E a autoridade fiscal, sempre tão zelosa a encontrar novas fontes de tributação, poderia passar a incluir na lista das profissões liberais a actividade de testa de ferro, para, pelo menos, tributar as comissões. Mais tarde, dentro do nosso querido corporativismo, até poderemos possuir uma Ordem dos Testas de Ferro, com bastonário e tudo o mais.
Perante o desplante de alguém, a roçar o puro desrespeito numa Comissão de Inquérito parlamentar, ou se reage de modo desagradável e a sério, ou então ri-se. Mariana Mortágua, perante o espetáculo burlesco das declarações de Bernardo Moniz da Maia optou por se rir. E fez muito bem. Porquê perder também aquilo que ainda nos resta, os brandos costumes? Os franceses com Alexandre Dumas tiveram o Homem da Máscara de Ferro. Nós como país mais pequeno, ficamos só pela testa.
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