A chamada “sala de visitas” do Porto é um espaço contínuo que abarca uma avenida (Aliados) e duas praças (Liberdade e Humberto Delgado). Aqui se comemoram as grandes efemérides – da Passagem de Ano às vitórias do Futebol Clube do Porto –, têm lugar concertos e manifestações políticas. No entanto, se excluirmos a praça da Liberdade, este logradouro, amplo à escala da cidade, é relativamente recente: 100 anos, apenas. Antes de 1916, este espaço estava preenchido pelos arruamentos e dezenas de prédios que constituíam o antigo Bairro do Laranjal.
Mas tudo tinha começado cem anos antes, em 1816, quando, desembolsando um pouco mais de 31 contos de réis, a Câmara Municipal do Porto adquiriu um palacete setecentista na frente norte da então chamada Praça Nova. Para instalação dos serviços da edilidade, o edifício foi sujeito a obras de remodelação, sendo coroado com a estátua de um guerreiro, intitulada “O Porto”, propositadamente esculpida para o efeito.
Na verdade, por essa época, a praça era já um local de certa importância. A proximidade de três importantes mosteiros – dos Loios, dos Congregados e das monjas de São Bento de Ave-Maria –, o facto de se encontrar na encruzilhada de ligações entre os bairros ocidental e oriental e junto às saídas da cidade para norte, contribuíram para tornar este largo num importante polo comercial.
A extinção das ordens religiosas, em 1834, leva à venda em hasta pública dos antigos mosteiros dos Congregados (que ocupava a frente nascente da praça) e dos Loios (frente sul). Em consequência, vão-se abrindo aqui estabelecimentos comerciais de prestígio – relojoarias, bancos, hotéis, cafés, farmácias e livrarias –, bem como escritórios de advogados, consultórios médicos e redacções de jornais.
Na segunda metade do século XIX, a praça torna-se o ponto de encontro da fina-flor da cidade. No seu centro é colocada a estátua equestre de D. Pedro, fundida com o metal derretido das peças de artilharia do Cerco do Porto. Em seu redor são colocados bancos de jardim, erguidos candeeiros de iluminação e plantadas árvores. Em 1882, a Câmara do Porto decide calcetar a praça recorrendo a pequenas pedras de calcário e basalto, justapostas em faixas de cor alternadas – a conhecida “calçada portuguesa”. A praça tornara-se num dos locais mais aprazíveis do Porto. A abertura do tabuleiro superior da ponte Luís I, em 1886, e a chegada do comboio à estação de São Bento em 1896, vieram reforçar a importância da praça e a sua influência sobre a envolvente regional.
Um boulevard portuense
Por essa altura, começam a chegar ao Porto os ecos das profundas transformações que se operavam em Paris, por iniciativa do barão Haussman, com a abertura dos grandes boulevards. De tal forma que, pelo final do século XIX, entre os círculos pensantes do Porto, generaliza-se a ideia de que o centro cívico era demasiado exíguo, falando-se da necessidade de se rasgar uma grande avenida central.
Em 1889, o engenheiro Carlos Pezerat apresenta à Câmara um projecto propondo o rompimento de uma ampla avenida ligando a praça da Liberdade à igreja da Trindade. Seria um grande “passeio público”, com uma larga placa central, com árvores e lagos. O lado poente da nova avenida seria ocupado por diversos edifícios ligados à administração pública, a construir de raiz: governo civil, câmara municipal, biblioteca, museu, corpo da guarda e bombeiros.
Em 1915, foram os próprios técnicos da Câmara a elaborar um projecto para a abertura da “Avenida da Cidade”. Tratava-se de uma via com 55 metros de largura que, tal como o plano anterior, propunha a ligação da praça da Liberdade à da Trindade. Mas, como novidade, este projecto procura diferenciar o espaço da praça da Liberdade do da avenida. Ou seja, a avenida é traçada com uma largura menor do que a da praça, valorizando-se os cunhais arredondados dos edifícios que, a poente e a nascente, fariam o arranque da avenida. Tal princípio iria perdurar.
O projecto foi apreciado pela Comissão Municipal de Estética, da qual faziam parte o arquitecto Marques da Silva e um ilustre arquitecto inglês que se encontrava no Porto a convite da Câmara, Barry Parker. Será a este arquitecto inglês, paladino do conceito da cidade-jardim, que a Câmara vai encarregar de elaborar um novo plano da avenida.
Barry Parker vai propor uma avenida como um espaço comercial e de passeio. Teria uma ampla placa central ocupada por vegetação e pérgulas. O edificado seria composto por prédios baixos que, ao nível do piso térreo, teriam uma arcada que daria acesso a estabelecimentos comerciais.
O projecto de Barry Parker foi aprovado e as suas ideias mestras observadas: a avenida em “forma de bacalhau”, a clara identificação das praças da Liberdade e do Município (hoje, do General Humberto Delgado), o eixo central unindo a estátua de D. Pedro com o centro da fachada da nova câmara, a localização do edifício dos paços do concelho e o traçado das ruas que o ladeiam.
No entanto, o edifício da Câmara Municipal que hoje temos nada tem a ver com o idealizado por Barry Parker. O arquitecto da cidade-jardim propunha um edifício de apenas dois pisos de estilo neoclássico que permitisse, a quem subisse a avenida, ver a torre da igreja da Trindade por detrás, criando a ilusão de pertencer ao próprio edifício da câmara. Para além dos paços do concelho, o projecto de Barry Parker foi também totalmente desvirtuado no que diz respeito à arquitectura dos edifícios que ladeiam a avenida.
Embora reconhecessem a validade do traço urbanístico proposto, a administração camarária da época e os seus técnicos mais conceituados – com formação francesa e uma clara preferência pelas beaux-arts – não se identificam com a contenção anglo-saxónica proposta por Barry Parker. As suas expectativas inclinavam-se claramente para um estilo mais ornamentado e exuberante.
Cem anos de avenida
A 1 de Fevereiro de 1916, com a presença do presidente Bernardino Machado, dava-se início à demolição do antigo edifício da Câmara Municipal, inaugurando-se a construção da avenida, primeiro chamada “da Cidade” ou “Central”, depois da Primeira Guerra Mundial, “das Nações Aliadas”, e, mais tarde, apenas “dos Aliados”.
Do arquitecto Marques da Silva são os projectos dos dois monumentais prédios que marcam o arranque da avenida – o da sede da seguradora “A Nacional” e o do edifício “Pinto Leite” – que definem claramente a separação entre a praça da Liberdade e a avenida dos Aliados, como era intenção de Barry Parker.
No período que medeia entre as duas guerras mundiais, irão sendo progressivamente edificados quase todos os edifícios da nova avenida. Haverá liberdade para cada arquitecto propor o estilo que entender. Apesar disso, a avenida terá uma arquitectura bastante coerente, com fachadas a alternar entre o ecletismo ao gosto fin-de-siècle até à chamada art-déco que resultou do estilo difundido a partir da Exposition des Arts Décoratifs, realizada em 1925 em Paris.
Em 1929, no início da placa central da avenida, inaugura-se a escultura “Juventude”, mais conhecida como “A Menina Nua”, do escultor Henrique Moreira com pedestal do arquitecto Manuel Marques e, em 1932, “Abundância” ou “Os Meninos”, um pouco mais acima, dos mesmos autores.
A monumentalidade da nova avenida obrigou também à reformulação da frente urbana da velhinha praça da Liberdade. Com a excepção do edifício das Cardosas e do da Casa Navarro, todos os restantes foram reconstruídos ou, pelo menos, viram as suas fachadas profundamente alteradas.
Recusada a proposta de Barry Parker para a nova sede da autarquia, foi realizado um concurso público, da qual sai vencedor o arquitecto António Correia da Silva. A construção do edifício inicia-se em 1920 mas só é inaugurado em 1957.
Para além dos serviços do Estado – Paços do Concelho, Banco de Portugal, Caixa Geral de Depósitos, Correios (bastante mais tarde) –, na nova avenida e no seu entorno instalam-se as sedes dos principais jornais, de bancos privados, de companhias de seguros e de diversas empresas. Consultórios médicos, escritórios de advogados e engenheiros, ateliês de arquitectos, cafés, confeitarias e outros estabelecimentos comerciais de prestígio – todos buscam instalar-se por aí.
Em 2004, mercê da construção da linha D do Metro do Porto – que previa a abertura de uma estação em plena avenida dos Aliados –, é encomendado aos arquitectos Álvaro Siza Vieira e Eduardo Souto de Moura a requalificação de todo o eixo urbano. Recusando a sequência praça-avenida-praça tão caras a Barry Parker e a Marques da Silva, Siza Vieira contrapôs um espaço único, uma grande praça da cidade. Para tal, entre outras medidas, propõe a utilização de um só material de revestimento de pavimento, procurando introduzir um factor de união visual de todo o espaço. Siza propunha ainda a deslocação da estátua equestre de D. Pedro IV e sua rotação de 180 graus, o que acabou por não acontecer. O projecto foi muito contestado, mas acabou por ser concretizado quase na íntegra. Apesar de já ter passado uma dúzia de anos, muitos portuenses continuam hoje a lamentar o desaparecimento da calçada portuguesa e dos espaços ajardinados da placa central que foi pavimentada com placas de granito. [daqui]
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