Estava a ver um jogo entre o Equador e as Honduras quando me lembrei que este último país esteve envolvido num dos mais bizarros incidentes da História recente, conhecido por 'Guerra das 100 Horas' ou 'Guerra do Futebol'. O conflito foi travado em Julho de 1969 e envolveu dois países vizinhos da América Central: El Salvador e Honduras. Nos combates e bombardeamentos, que duraram apenas quatro dias, morreram mais de 3 mil pessoas e tudo começou com um simples jogo de futebol entre selecções que procuravam classificar-se para o Campeonato do Mundo do ano seguinte.
Na origem do conflito esteve uma rivalidade regional que se alimentou de um problema económico profundo: as Honduras (dispondo de mais território) tinham na altura 350 mil imigrantes salvadorenhos, sobretudo na zona de fronteira, e estes camponeses estavam a ser maltratados pelo regime do general Lopez Arellano, que era sustentado por grandes proprietários agrícolas, entre estes a poderosa multinacional United Fruit Company, que possuía 10% do território hondurenho.
A questão da emigração salvadorenha para as Honduras tornara-se um assunto muito emocional dos dois lados, para mais alimentado por histerias nacionalistas. A 8 de Junho de 1969, os dois países enfrentaram-se na ronda de qualificação para o Campeonato do Mundo que se realizaria no México. No primeiro jogo, em Tegucigalpa, as Honduras venceram por 1 a zero, mas houve violência contra cidadãos salvadorenhos. A resposta, a 15 de Junho, em San Salvador, envolveu grande brutalidade: os adeptos hondurenhos foram espancados em plena rua e os jogadores foram vítimas de ameaças físicas. No final do encontro, os jogadores da equipa diziam ter sido uma sorte a derrota por 3 a zero. Seguiu-se um jogo de desempate, em terreno neutro, na Cidade do México, e El Salvador venceu por 3 a 2, após prolongamento.
Entretanto, o futebol servira de pretexto para criar um clima de extrema tensão entre os dois governos. No próprio dia do terceiro jogo, a 26 de Junho, El Salvador cortou relações diplomáticas com as Honduras. Os dois vizinhos estavam a mobilizar soldados e a adquirir armas, sobretudo aviões americanos comprados no mercado privado, para contornar o embargo que existia à compra de armamentos. Os aviões utilizados eram da Segunda Guerra Mundial e bastante obsoletos, o que contribuiu para que não houvesse ainda mais vítimas.
El Salvador atacou as Honduras a 14 de Julho. O país mais pequeno dispunha de uma força militar numerosa e bem comandada. A invasão visou zonas montanhosas de fronteira, a norte do país invadido, e pretendia obter ganhos territoriais também no Golfo de Fonseca, partilhado pelos dois países.
Este golfo da Costa do Pacífico tem o nome de um arcebispo espanhol do século XVI, Rodriguez de Fonseca, que foi confessor de Isabel a Católica e famoso adversário de Cristóvão Colombo, além de ter sido o homem que financiou a expedição de Fernão de Magalhães. Fonseca tinha origem portuguesa e pertencia a uma família nobre que se refugiara em Castela por ter apoiado o lado vencido na batalha de Aljubarrota.
O Golfo de Fonseca e os territórios da fronteira foram ocupados facilmente pelos salvadorenhos logo nas primeiras horas da Guerra do futebol, mas seguiu-se a ressaca da falta de estratégia. Incapaz de usar a sua aviação demasiado primitiva, o exército salvadorenho começou a enfrentar o problema da falta de munições e de combustível, sobretudo após um eficaz ataque da aviação hondurenha a uma das suas bases.
Com os dois lados num impasse, a 18 de Julho de 1969 foi negociado o cessar-fogo, mas o tratado de paz só seria concluído em 1980.
As consequências do conflito foram terríveis. Do lado hondurenho houve mais de duas mil vítimas, sobretudo civis. Os salvadorenhos tiveram menos baixas, mas os efeitos a prazo foram bem mais pesados.
Os militares tinham ganho uma influência desmedida nos dois países. Honduras e El Salvador envolveram-se depois numa dispendiosa corrida aos armamentos. Centenas de milhares de imigrantes salvadorenhos foram expulsos das Honduras, na conclusão rápida de um processo que começara anos antes. O regresso destes refugiados representou uma desestabilização económica irremediável para El Salvador. Quando se deu o choque petrolífero, em 1973, a subida dos preços aumentou o descontentamento, que se tornaria insustentável após fracassar uma tentativa de fazer a reforma agrária. Em 1977, um general de linha dura, Carlos Romero, venceu as eleições com apoio americano e uso extenso de fraude eleitoral. No dia 28 de Fevereiro desse ano, um protesto pacífico na capital foi reprimido pelo exército salvadorenho, com um balanço de 1500 mortos. A violência intensificou-se e dois anos depois, El Salvador mergulhou numa longa guerra civil na qual morreram mais de 75 mil pessoas.
Dizem que a bola é redonda e que o futebol tem certa lógica, mas este episódio sugere o contrário. A guerra talvez pudesse ter sido evitada, se El Salvador e Honduras não tivessem jogado a ronda de qualificação naquelas datas e num momento de grande tensão política. Ou talvez a luta não pudesse ser evitada e o futebol tenha sido apenas o rastilho que incendiou a pólvora. O pretexto de um jogo era demasiado útil para acender as brasas das paixões nacionais. A guerra foi usada cinicamente por políticos que nunca quiseram resolver uma questão que diplomatas medianos teriam solucionado com facilidade. [Luis Naves, aqui]
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