O governo grego só se esqueceu de uma coisa: foi de perguntar aos outros contribuintes europeus se também lhes dava jeito continuar a pagar as contas da Grécia.
Quando se examina a questão da da Grécia, há um vício de análise a que poucos escapam: é pôr de um lado a democracia grega, com o seu povo, e do outro lado, abstracções como a “Europa”, a “troika” ou as “instituições”. Por mais erradas que sejam as posições do governo grego, representariam a vontade de um povo que vemos na televisão a andar na rua ou a votar; por mais certas que estejam as propostas da “Europa”, não corresponderiam a mais do que às folhas de Excel, sem sangue nem alma, de uma tecnocracia económica internacional, de que os funcionários engravatados do FMI seriam o rosto fugidio.
Portanto, quem é pela democracia, pela política, pelas “pessoas reais” e outras coisas assim igualmente bonitas, não pode ter direito a hesitações: mesmo não apreciando a demagogia de Tsipras, mesmo tendo reservas em relação ao que consta ser o modo de vida dos gregos, não deveria estar naturalmente ao lado da “democracia” e dos eleitores gregos quando resistem heroicamente à pressão da “finança” e da “burocracia” internacionais?
Ora acontece que não é assim, e por esta razão: a Grécia não é a única democracia na Europa. O que limitou as propostas que os outros governos europeus, e não apenas as “instituições”, têm feito à Grécia, não é simplesmente uma análise da situação grega, mas a disponibilidade dos eleitorados dos países credores para partilharem com a Grécia o dinheiro dos seus impostos. Esse é que é o verdadeiro problema da Grécia – e, já agora, da “Europa”.
Nos últimos meses, temos todos andado distraídos com a progressão dos festivais de esquerda radical no sul da Europa. É o Podemos em Espanha, é o Syriza na Grécia, é ainda o que se está para ver, mas que começa a demorar, em Portugal. Nesse ambiente de arraial, temo-nos esquecido de que noutros países, mais a norte, também tem havido progressão, não tanto da esquerda radical, mas de populismos nacionalistas ou de eurocepticismos conservadores, para os quais os abusos fiscais do governo grego, mais uma vez sufragado pelo voto dos gregos, não são propriamente a melhor publicidade para a causa europeísta.
A esse respeito, o sinal que ontem mais nos devia ter importado foi a reacção da social-democracia alemã ao referendo grego. Na Alemanha, os sociais-democratas, tal como os democrata cristãos, sabem que o subsídio permanente a uma Grécia governada pela irresponsabilidade fiscal acabará, mais tarde ou mais cedo, por ter de sair das cimeiras governamentais para se tornar um tema de debates no parlamento, ou mesmo de consultas populares. Ora, quem é que deseja fazer campanha na Alemanha, na Finlândia ou até em Portugal pedindo aos eleitores mais dinheiro para a Grécia? E ainda por cima, sem nada para contrabalançar a dádiva, a não ser a decisão do governo e do eleitorado grego de rejeitarem todas as mudanças necessárias para deixarem de depender da Europa?
No norte da Europa, a democracia começa a voltar-se contra a União Europeia. Para uns, a UE é a porta aberta a dilúvios de imigrantes; para outros, é o sorvedouro directo ou indirecto do seu dinheiro. Na Dinamarca (fora do Euro, mas com uma moeda ligada ao Euro), as eleições de 18 de Junho fizeram do partido populista anti-imigração Partido do Povo Dinamarquês o segundo maior partido no parlamento. Na Alemanha, o partido conservador anti-Euro a Alternativa para a Alemanha já obteve representação em cinco parlamentos estaduais. Na Finlândia, o partido dos Verdadeiros Finlandeses (nome antigo) é o segundo maior grupo parlamentar desde Abril deste ano, e entrou na actual coligação governamental. Infelizmente para a esquerda radical do Mediterrâneo, também há democracia no Báltico e no mar do Norte. É isso que explica a “falta de solidariedade” dos sociais-democratas alemães, que não têm de ganhar eleições na Grécia, como o Syriza, mas na Alemanha.
O governo grego perguntou aos eleitores da Grécia se lhes dava ou não jeito que os outros contribuintes europeus continuassem a pagar-lhes as despesas. Aos eleitores gregos, como a quaisquer eleitores em qualquer outra parte do mundo, o negócio não pareceu mau, e votaram em conformidade. O governo grego só se esqueceu de uma coisa: foi de perguntar aos outros contribuintes europeus se também lhes dava jeito continuar a pagar as contas da Grécia. A pergunta, embora não tendo sido feita, pode ter resposta um dia destes. [Rui Ramos, aqui]
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