A descentralização pressupõe a redistribuição da autoridade, responsabilidade e recursos financeiros para o desempenho de serviços públicos entre diferentes níveis de governo.
Todos os estudos comparados demonstram que Portugal é um estado altamente centralizado. E demonstram que quanto mais descentralizados são os estados, mais avançados o são, do ponto de vista da criação da riqueza e da competitividade.
Ora, a centralização não apenas contribui para assimetrias profundas como concorre para uma fraca eficiência na correlação entre os recursos alocados às políticas públicas e os resultados obtidos, nomeadamente na saúde e educação.
Assim sendo, é lícito presumir que, com recursos idênticos, os desígnios das políticas públicas podem ser alcançados com maior eficiência se geridos na proximidade, em função de necessidades diversas, dada as assinaláveis diferenças entre os municípios, correspondendo aos anseios das populações e desfrutando do factor de proximidade que permite identificar prioridades, necessidades e carências.
Perguntar-se-á, então, por que razão tantos municípios colocam reservas aos propósitos anunciados pelo Governo e negociados com a Associação Municipal de Municípios, a ponto de muitos terem rejeitado quase todas as competências no presente processo.
São várias as razões. Desde logo, a descentralização proposta transfere a responsabilidade, mas não garante a autoridade nem assegura os recursos financeiros.
A recusa para 2019 e 2020 deste pacote de "descentralização" é, por isso, um sinal de que o caminho não é este. Contudo, o que a Lei consagra é que, já a partir de 2021, todas as competências tenham que ser obrigatoriamente aceites, o que ameaça não apenas a estabilidade financeira e governativa das autarquias, como o faz em ano de eleições autárquicas.
Veja-se a título de exemplo o caso da saúde, em que os municípios passam a ser responsáveis pela colocação de pessoal auxiliar e da manutenção do edificado. Não podendo, contudo, determinar as valências ou qual o horário de funcionamento de um centro de saúde.
Ora, é precisamente isso que preocupa a população, que dificilmente entenderá que o seu município continue a não ter uma palavra a dizer sobre isso.
Se a descentralização é útil será, precisamente, para que possa ser avaliado, na proximidade, o interesse de serem gastos, numa determinada comunidade, mais recursos em serviços de proximidade, se por exemplo essa população for mais envelhecida e a zona for pior servida de transporte público. Mas não é isso que este processo garante. Ao contrário, mantém essa decisão num ministério, na capital.
Assim, o que temos neste processo proposto pelo Governo e em execução não é a capacidade de decidirmos diferente em situações diferentes. Ou seja, não é equidade: é, simplesmente, a tarefização dos municípios, que passam a ser meros capatazes do poder central, sem terem sequer a garantia de que os recursos financeiros que lhes são transferidos correspondem ao aumento da sua despesa corrente.
A experiência recente justifica estas reservas. No caso da educação, as autarquias que aceitaram antecipadamente a transferência de competências têm assinalado a insuficiência da transferência de recursos e demonstram arrependimento.
No caso do transporte público, em Lisboa e Porto, pese embora ter havido uma vontade das autarquias em assumir a descentralização - com a respectiva transferência de autoridade e responsabilidade através da municipalização da Carris e STCP - a verdade é que o défice tarifário passa, doravante, a onerar os cofres das autarquias.
Não se entende, pois, neste processo, nem a utilidade da mera tarefização nem a falta de sensibilidade política de quem definiu um "dead line" que impõe que, no decurso do último ano do actual mandato, os municípios aprovem orçamentos que contemplam múltiplas novas funções e encargos subfinanciados, que alteram profundamente o "status quo" e terão profundas exigências ao nível das suas macroestruturas.
Acresce, ainda, que a inexistência de regiões administrativas impede soluções mais eficientes e sinérgicas, o que irá agravar o fosso existente entre as áreas metropolitanas e o resto do país. A fraca capacidade técnica e administrativa a nível local e a falta de uma transferência justa de recursos resultará em maiores assimetrias, com perda de qualidade dos serviços ou com o depauperamento dos cofres municipais, na ausência de um novo modelo estável de financiamento autárquico. Tanto mais que a recente transferência de parte da receita do IVA cobrado nos sectores do alojamento, restauração, comunicações, electricidade, água e gás resultou em valores negligíveis: menos de 1 por cento do orçamento municipal, no caso do Porto.
De facto, a descentralização anunciada aos soluços, com elevado grau de incerteza, não é uma panaceia. Serve, claro, o interesse do Estado Central, porque lhe permite alijar responsabilidades sem perder a autoridade e sem transferir recursos suficientes. E isto sucede num tempo em que o Parlamento insiste em legislar em matérias que, a haver uma verdadeira descentralização, deveriam ser competência exclusiva dos municípios, como é o caso da sobretaxa no IMI ou a renda em habitação social onde o investimento é esmagadoramente suportado pelos municípios.
Em suma, é urgente revisitar o pacote da descentralização, acolhendo, nomeadamente, as propostas formuladas pelos municípios das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto na cimeira de Sintra; reconhecendo que há assimetrias entre municípios que justificam prudência e desaconselham um modelo único; garantindo que mais do que tarefas se transferem competências políticas; assumindo compromissos de longo prazo quanto ao financiamento; assegurando que o Parlamento não legisla errática e arbitrariamente sobre o que são competências municipais. Tudo isto, é claro, acompanhado pelo processo de regionalização, que continua a tardar, e que certamente resolveria aquilo que este pacote nunca solucionará.
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