Há 120 anos, na Quinta das Nogueiras, em Godim, Peso da Régua, falecia Antónia Adelaide Ferreira. Terminavam assim os 84 anos de vida da que ficou conhecida como a “Ferrerinha”, a “mãe dos pobres”, mas que foi também uma empresária de raro sucesso, num tempo e num sector exclusivamente dominados por homens.
Figura incontornável do Alto Douro vinhateiro, Antónia Adelaide nasceu em 1811, no seio de uma família abastada e com créditos firmados no cultivo da vinha. Por diligência paterna, foi destinada a casar com um primo que nunca se interessou pelos negócios e que delapidou parte do património familiar. Enviuvou cedo, aos 33 anos, sendo já mãe de dois filhos: uma menina, Maria de Assunção, e um rapaz, António Bernardo Ferreira.
A viuvez precoce despertou em si a vocação de empresária, levando-a a assumir a liderança da Casa Ferreira, fundada pelo seu avô, Bernardo Ferreira, por ordens do Marquês de Pombal. Fez grandes plantações de vinha, construiu armazéns, contratou colaboradores, comprou quintas importantes – Aciprestes, Porto e Mileu – e fundou outras – como Vale Meão –, tornando-se uma figura de primeira grandeza no setor do Vinho do Porto.
À sua prosperidade não foi indiferente o Duque de Saldanha, um dos homens mais poderosos do seu tempo. O marechal pretendeu fazer casar o seu filho com a menina Maria de Assunção. Após recusa de D. Antónia, inconformado, o duque mandou raptar a jovem, então com apenas 12 anos. Para o evitar, D. Antónia e os filhos são forçados a fugir do país, fixando-se em Londres. Aí casa, em segundas núpcias, com um dos administradores de longa data da empresa, José da Silva Torres.
Já em Portugal, é numa das suas numerosas viagens do Alto Douro para o Porto, em 1861, que se dá o famoso naufrágio no traiçoeiro Cachão da Valeira que vitimou o seu amigo, o Barão de Forrester. Os remeiros foram incapazes de resistir à força da corrente, o barco embateu nas rochas e todos os ocupantes foram atirados para as águas revoltas do rio. Diz a tradição que o barão foi arrastado para o fundo pelo peso das libras de ouro que carregava no seu largo cinturão. Quis a sorte que D. Antónia se salvasse graças às suas saias que, insufladas de ar, a mantiveram à superfície e a levaram até à margem.
1868 foi um ano de produção excedentária de vinho do Porto. Apesar da excelente qualidade de vinho, as enormes quantidades disponíveis provocaram uma rápida saturação do mercado. Os viticultores viram-se a braços com produções que não conseguiam escoar. Para ajudar os produtores e talvez pressentindo uma excelente oportunidade de negócio no futuro, D. Antónia teve a coragem de comprar grandes quantidades de vinho, a baixo preço, num tempo em que todos queriam vender.
Dois anos mais tarde surge a praga do oídio que destrói grande parte dos vinhedos. Apesar dos preços escalarem vertiginosamente muito poucos tinham vinho para vender. Foi a oportunidade para D. Antónia recuperar o investimento efetuado e multiplicar a sua fortuna.
Entretanto, a região do Douro é também atingida pela filoxera, doença provocada por um inseto que sugava, secava e matava as raízes das videiras. O seu efeito manifesta-se, em primeiro lugar, nas zonas mais a leste mas, por volta de 1872, coloca de rastos muitas das mais conhecidas propriedades produtoras de vinho do Porto. Os rendimentos baixam drasticamente, provocando a escassez de vinho e uma nova subida do seu preço.
D. Antónia não se acomoda e desloca-se a Inglaterra para se informar sobre os meios mais modernos e eficazes para combater a praga. Ao mesmo tempo que luta contra a indiferença dos sucessivos governos portugueses em relação à sorte da produção vinícola nacional, D. Antónia adota processos mais sofisticados de produção do vinho e investe em novas plantações de vinhas. A solução passou por utilizar raízes de videiras americanas, imunes ao ataque da filoxera.
Tentando que as quintas do Douro não caíssem nas mãos dos ingleses, a Ferreirinha adquiriu-as uma a uma e, mais tarde, devolveu-as por um preço simbólico – chegando mesmo, em alguns casos, a doá-las – aos antigos proprietários.
Detentora de uma grande fortuna e de dezenas de quintas na região do Douro – com destaque para a Quinta do Vesúvio, a mais famosa das suas propriedades –, esta mulher visionária lutou sempre pelos mais necessitados e pelas suas causas. Quando, em 1880, ficou novamente viúva, intensificou o seu envolvimento em obras de benfeitoria, nomeadamente na construção dos hospitais de Vila Real, Régua, Moncorvo e Lamego.
Duas vezes viúva, D. Antónia consolidou a empresa de forma admirável. O seu espírito empreendedor ensinou-a a prever, decidir e actuar, mas nunca esquecendo o lado humano, o que a transformou numa figura de grande projeção e carisma.
Símbolo de empreendedorismo, de altruísmo e de generosidade, esta mulher determinada e corajosa construiu um enorme império ao longo do século XIX. Quando faleceu, em 1896, deixou uma fortuna considerável e perto de trinta quintas. Entre as numerosas quintas hoje geridas pela Casa Ferreirinha encontra-se a Quinta da Leda, situada em Almendra, Vila Nova de Foz Côa. Das uvas provenientes destas vinhas, nasce a base do vinho topo de gama da Casa Ferreirinha, o conceituado Barca Velha, símbolo inquestionável da qualidade mais alta dos vinhos do Douro e que é declarado apenas em anos realmente excepcionais.
Em 2004, a RTP exibiu uma série, da autoria de Francisco Moita Flores, retratando a sua vida ímpar. A emblemática empresa A. A. Ferreira foi adquirida em 1987 pela Sogrape que continua, anualmente, a entregar o “Prémio Dona Antónia Adelaide Ferreira” que visa distinguir “figuras femininas portuguesas que, devido às suas características humanas e capacidades de empreendedorismo, tenham replicado de alguma forma o excepcional exemplo de Dona Antónia nos tempos de hoje, nomeadamente através do contributo para o desenvolvimento económico, social e cultural do País”. [Manuel Sousa, aqui]
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