A montanha de tramoias do PS em Castelo Branco pariu um rato amedrontado. Um caso de estudo de compadrios e cobardias, em vésperas da chuva de ouro europeu.
A notável investigação de José António Cerejo no Público, sobre os negócios lamacentos de Hortense Martins, deputada e cacique do PS em Castelo Branco, é o retrato do país que temos de deixar de ser. Urgentemente. Um país corrupto, promíscuo, paroquial e sabujo, de gente baixa de mãos untadas, com um povo empobrecido, deixado à margem e no silêncio.
A história é esta: Hortense Martins – de quem o leitor nunca ouviu falar na vida mas é deputada há 15 anos – acumula as funções parlamentares com a capitania do PS beirão (essa escola de lideranças que nos deu José Sócrates), mais uns negócios familiares. Desde 2010, abocanhou mais de 275 mil euros de fundos comunitários para dois projectos turísticos em Castelo Branco.
O dinheiro foi atribuído à Investel, a empresa da deputada e do seu pai, pela Adraces, uma associação de municípios encarregue de distribuir dinheiro europeu – e constituída por correligionários socialistas, incluindo da Câmara de Castelo Branco que então tinha entre os vereadores Luís Correia – nada menos que marido de Hortense Martins e recentemente corrido do cargo de presidente por ordem judicial, por encaminhar contractos públicos para o próprio pai. Tudo gente idónea.
Autarcas do PS a dar dinheiro europeu a uma deputada-cacique do PS, casada com um dos decisores, já é oleoso que chegue, do ponto de vista da vergonha na cara. Sucede que levantou também problemas de legalidade: o regulamento dos fundos europeus dizia expressamente que só eram financiáveis projectos que não estivessem ainda concluídos. Os empreendimentos de Hortense Martins estavam abertos há mais de dois anos.
As primeiras reportagens de José António Cerejo deram na abertura de um inquérito criminal. Hortense Martins, entretanto, já estava em campo: para se pôr ao fresco, a deputada havia entregado em Março de 2019 na Conservatória do Registo Comercial um papel a dizer que já não era a gerente da empresa desde… 2011! Isto apesar de ter declarado o cargo nos seus registos de interesses e património – aliás, em 2015 tinha sido apanhada pela SÁBADO a receber o ordenado como se estivesse em exclusividade, ao mesmo tempo que acumulava precisamente com a gerência da Investel. O papel a dizer que tinha renunciado em 2011 é uma óbvia falsificação, praticada por uma deputada em funções, para se safar de um potencial crime de fraude na obtenção de subsídio.
Sobre este cambalacho no assalto aos dinheiros públicos para benefício privado por gente politicamente relacionada – acobertado depois por uma falsificaçãozinha de documento – debruçou-se o Departamento de Investigação e Ação Penal de Coimbra, que agora chega ao fim dos seus esforços. E que fim é esse? Fica como se não fosse nada.
No desfecho conhecido esta semana, o Ministério Público propôs – e um juiz de instrução concordou – a suspensão provisória do processo relativo à falsificação de documento. A deputada Hortense Martins e o pai, os dois envolvidos no crime, pagam mil euros cada (obviamente sem admissão de culpa) e não se fala mais nisso. O Ministério Público achou que o grau de culpa de uma deputada que cometeu um crime para se safar de outro não era "particularmente elevado". E porquê? Porque o outro crime, o de fraude na obtenção de subsídio – por sacar dinheiro europeu para obras feitas – também já tinha sido arquivado! E arquivado porquê? Porque afinal, os dois empreendimentos turísticos não estavam ainda completos, apesar de estarem abertos há dois anos.
Hortense Martins disse (e os amigos da Adraces, gestora dos fundos da UE, confirmaram) que ainda faltava pôs umas prateleiras num bar. Custo: 1500 euros. É isso: a deputada sacou mais de 275 mil euros para uma obra feita e safou-se por causa de umas prateleiras que custaram 1500. O Ministério Público não está convencido, mas dá-se por vencido. Conclui que não lhe compete pronunciar-se sobre a interpretação da lei feita pelos amigos de Hortense Martins e fecha a investigação. Se o estimado leitor acha que a melhor maneira de saber se uma pessoa cometeu um crime é perguntar aos seus comparsas, então claramente o estimado leitor podia ser procurador do Ministério Público no Departamento de Investigação e Ação Penal de Coimbra.
O asco deste filme pornográfico não é apenas político. O trabalho do Ministério Público e da procuradora Alexandra Alves (é bom sabermos o seu nome) é um marco de cobardia institucional e de negligência grosseira – ou então um gesto corriqueiro de quem quer apenas tirar papel da sua secretária, seja lá como for. Que esta aberração de justiça tenha sido carimbada por um juiz de instrução é outro aborto judicial que comodamente desresponsabiliza a procuradora das mãos que pôs nos bolsos. Tudo está bem quando acaba bem.
Claro que num país decente haveria responsabilidades hierárquicas sobre esta justiça demissionária. Inquéritos disciplinares. Claro que num país sério, Hortense Martins seria publicamente censurada pelo Parlamento onde (se) serve. Claro que um PS honesto lhe retiraria a confiança política e a expulsaria do partido e do grupo parlamentar. Claro que se houvesse liderança, o secretário-geral desse partido (que calha ser o primeiro-ministro responsável pelo dinheiro europeu que aí vem) lhe tirava o tapete e a punha na rua. Mas estamos em Portugal, não há nada disto. Há uma notícia de jornal, funeral discreto de um caso de antologia da história do caciquismo nacional e da justiça amedrontada que nos condena ao subdesenvolvimento.
Para o ano começa a chover ouro. Serão 6,4 mil milhões de euros por ano, dizem, a passar pelas mãos desta boa gente. Se isso lhe tira o sono, caro leitor, e quiser pedir explicações deste caso a Hortense Martins, ao PS, ao Parlamento ou ao Governo, o máximo que lhes arrancará é o habitual encolher de ombros: "à Justiça o que é da Justiça". E à Hortense o que é da Hortense.
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