O presidente da Câmara do Porto voltou hoje a alertar para as dificuldades que os municípios enfrentam para cumprir o programa de investimentos devido à lei da contratação pública. O exemplo partiu do concurso para a aquisição de um novo sistema de semáforos na cidade, cujo processo iniciou há quatro anos, mas que não avança devido a litigâncias entre concorrentes. "Um verdadeiro imbróglio jurídico" sem fim à vista, diz Rui Moreira. Se nada mudar entretanto, a bazuca pode ser desperdiçada, avisa.
Seria preciso uma revisão profunda à lei da contratação pública, essencialmente em relação ao instrumento da resolução fundamentada, defendeu Rui Moreira na reunião de Executivo desta segunda-feira, depois de ter narrado, passo a passo (ver separador abaixo), o calvário pelo qual o Município do Porto tem passado desde que decidiu adquirir um novo sistema de gestão semafórica para a cidade, porque o que existe data de 1993 e está "completamente obsoleto".
Não é para menos. Segundo a vereadora dos Transportes, Cristina Pimentel, entre Fevereiro de 2019 e Fevereiro de 2020, houve mais de 2.000 avarias em semáforos. Os trabalhadores municipais fazem o que podem para corrigir as falhas e até chegam ao ponto de adquirir peças no Ebay, "porque no mercado já não encontram solução", referiu a responsável.
"Isto explica porque a contratação pública é um verdadeiro inferno", torna o presidente da Câmara do Porto, que diz que os "pequenos ajustes que vão sendo feitos aqui e ali" não resolvem a caducidade técnica dos equipamentos.
Uma "saga que continua nos tribunais" e que Rui Moreira não sabe quando vai terminar. As culpas aponta-as ao Estado, que depois de uma directiva europeia que pedia prudência na utilização da resolução fundamentada, retirou-a da esfera dos municípios. "A resolução fundamentada existe para fazer prevalecer o interesse público. Curioso é que o Estado tenha mantido para si e para as empresas públicas o instrumento e o tenha retirado da esfera das câmaras municipais. A verdade é que os municípios são sempre destratados", constatou.
Embora o tribunal, no seu último acórdão, tenha dado razão à Câmara do Porto, o autarca teme que devido ao tempo que já passou entre a adjudicação à proposta vencedora da Soltráfego, possa obrigar a que o processo inicie todo novamente. "Temos muita dificuldade em executar seja o que for. No limite, teremos de lançar novamente concurso e não sabemos se poderemos estar mais quatro anos assim, porque quem concorrer também pode novamente tentar fazer valer a sua posição, caso considere que foi prejudicado", aferiu.
Na reunião preparatória para a cimeira das Áreas Metropolitanas do Porto e lisboa ficou definido entre os autarcas que este é ponto central na agenda de trabalhos, lembrou Rui Moreira, para demonstrar a transversalidade do problema.
"Noutros países em que não há resolução fundamentada foram criados dois modelos supletivos, para os quais poderíamos olhar. Na Holanda, quem interpõe uma providência cautelar, tem de pagar uma caução; caso o tribunal não venha a dar-lhe razão, fica sem o valor. Em Espanha, foi instituído um sistema arbitral, um grupo que decide se há ou não há razão para avançar com uma providência cautelar", esclareceu.
Tal como está a lei da contratação pública, o presidente da Câmara do Porto não tem dúvidas de que favorece as grandes empresas. "Favorece os tubarões e prejudica o peixe miúdo", quando, na sua opinião, seria precisamente o contrário que deveria ser acautelado, de modo a facilitar a participação de empresas locais no investimento público.
Rui Moreira teme ainda pela aplicação dos fundos comunitários prometidos para enfrentar a crise. "Corremos o risco da bazuca ficar presa a uma providência cautelar por quatro anos e depois perdemos os prazos", avisou. "Esta é uma matéria que dinamita o poder democrático e a capacidade do poder politico de responder àquilo que são as preocupações da população", frisou ainda.
O debate surgiu a propósito de uma proposta de recomendação apresentada pela vereadora da CDU, Ilda Figueiredo, referente a um plano de actuação para as avarias dos semáforos na cidade do Porto. Rui Moreira e a sua vereação recusaram aprová-la, após explicação de todas as diligências que os serviços municipais têm desenvolvido e mesmo da imagem insólita que é o Município apresentar-se como comprador numa plataforma online de leilões, para adquirir peças antigas. Ou seja, tudo que está ao alcance da Câmara do Porto fazer nesta situação de impasse, está a ser feito.
PS e PSD abstiveram-se na votação da proposta, que foi recusada. Pelo Partido Socialista, Fernanda Rodrigues considerou que a autarquia fez o que podia fazer até ao limite das diligências. Já o vereador social-democrata, Álvaro Almeida, disse que se trata de "uma saga kafkiana", que merece uma reflexão para apurar se "são os critérios da lei que estão demasiado favoráveis à litigância ou se houve uma decisão errada agravada por um problema de fundo que é a demora dos tribunais".
Rui Moreira lembrou ainda que há dois anos já seguiu uma proposta de recomendação ao Governo, no sentido de rever a lei da contratação pública. O autarca lamentou ainda não ter o apoio da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP). "Para mim a Associação não existe, é um mito urbano", assinalou o presidente da Câmara do Porto, que reiterou que se fosse por sua vontade o Município já não faria da ANMP.
Cronologia do processo
19.12.2016 Publicado o anúncio de procedimento em Diário da República (concurso limitado por prévia qualificação com publicidade internacional);
21.07.2017 Apresentaram-se três candidatos tendo todos eles sido qualificados;
31.07.2018 Adjudicação da Câmara do Porto (nessa sequência, o adjudicatário apresentou a caução e parte dos documentos de habilitação);
11.09.2018 O Município do Porto foi citado da interposição da Ação de Contencioso Pré-Contratual; a partir desse momento, e por força do artigo 103.º/A Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) suspendeu-se imediatamente a tramitação procedimental;
09.2018 No mesmo mês, o Município do Porto apresentou um requerimento de levantamento do efeito suspensivo automático - artigo 103.º CPTA;
18.10.2018 Decidiu o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto indeferir o requerimento, mantendo o efeito suspensivo, o qual se mantem até à presente data;
27.03.2019 Foi proferida sentença que julgou aquela ação parcialmente procedente e: manteve a decisão de exclusão de proposta dos autores; declarou a caducidade da adjudicação à proposta do agrupamento adjudicatário; absolveu o Município de adjudicação do concurso à proposta das autoras;
Desta sentença foram interpostos três recursos: pela autora, pelo Município do Porto e pela contra-interessada (o adjudicatário);
29.11.2019 Foi proferido Acórdão pelo Tribunal Central Administrativo Norte, no qual: foi concedido procedimento ao recurso da autora, condenando desse modo o réu a adjudicar a proposta da concorrente Siemens, S.A. e negando provimento ao recurso do agrupamento contra-interessado; julgou prejudicado o conhecimento do Município e parcialmente prejudicado o recurso do contra-interessado; tanto o Município como o contra-interessado apresentaram recurso de revista;
31.01.2020 Por despacho proferido, o relator do Tribunal Central Administrativo do Norte: admitiu o recurso interposto pelo contra-interessado; não admitiu, por extemporaneidade, o recurso interposto pelo Município do Porto;
O Município reclamou desta decisão para o Supremo Tribunal Administrativo (STA);
19.03.2020 Por despacho proferido, foi aquela reclamação deferida e admitido o recurso, tendo então ordenada a sua submissão a apreciação preliminar pelo STA;
21.05.2020 Por Acórdão proferido, acordaram os juízes da formação de apreciação liminar da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo admitir ambas as revistas apresentadas;
01.10.2020 Por Acórdão de revista, proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, foi dada razão ao Município do Porto (bem como à Soltráfego), considerando-se lícita a decisão de exclusão da proposta apresentada pela Siemens. Na mesma decisão foi ainda decidido que compete agora ao Tribunal Central Administrativo Norte apreciar a questão relativa à decisão de caducidade da adjudicação à Soltráfego.
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