Durante os primeiros 10 anos da sua existência, o BCE nunca comprou dívida pública. Fê-lo só no auge da crise, para estabilizar o mercado da dívida
Na sua curta existência, o novo governo grego já foi pródigo em sugestões e ideias para reduzir o fardo da dívida pública grega.
A proposta actual assenta em dois pilares. Primeiro, converter a dívida grega detida pelo BCE em perpetuidades. Segundo, converter grande parte da dívida à troika em obrigações cujo pagamento de juros depende do valor do PIB grego. Estas propostas são exequíveis? Serão desejáveis? E qual deve ser a reacção portuguesa a elas?
Durante os primeiros 10 anos da sua existência, o BCE nunca comprou dívida pública. Fê-lo só no auge da crise, para estabilizar o mercado da dívida. Estas compras foram muito contestadas na Alemanha e levaram a um processo judicial que ainda decorre no Tribunal Europeu de Justiça. O BCE acabou de anunciar um novo program de compras há umas semanas, mas foi claro que não compraria dívida grega sem acordo com a troika.
Um dos pilares fundamentais da união monetária é que o BCE não deve financiar directamente a dívida pública de só alguns Estados. Fazê-lo seria transferir recursos de todos para ajudar alguns, uma redistribuição que o banco central não tem legitimidade para fazer. Por isso, o BCE afirma claramente que estes programas de compra são temporários e distribuídos por todos os Estados de forma equitativa. Ora, transformando a dívida grega em perpetuidade, torna-se difícil argumentar em tribunal que esta é uma medida temporária. Mesmo que queira vender as novas perpetuidades, duvido que o BCE encontre quem as compre. Arrisca ver todo o trabalho de Mario Draghi ser considerado ilegal nos tribunais no Luxemburgo ou Karlsruhe.
Para além disso, a Grécia quer cortar o valor da dívida. Uma dívida de 1 euro que paga 10% e dura um ano, dá 1,1 euros daqui a um ano. Transformada em perpetuidade com a mesma taxa, dá antes 10 cêntimos por ano para sempre. Isto vale menos do que 1,1 euros daqui a um ano. O valor da perpetuidade depende da taxa de juro. Se for zero, o valor da dívida é zero, se for mais alta do que 10% compensa pelo adiamento para sempre do pagamento do 1 euro inicial. Por meias palavras, o ministro das finanças Varoufakis já insinuou que quer mudar para perpetuidades de forma a baixar o valor da dívida sem que os eleitores percebam. O governo alemão já respondeu que o seu povo não é burro.
Cortar o valor da dívida grega no balanço do BCE implica que o BCE vai ter uma perda. Por isso, nos próximos anos, vai pagar menos dividendos. Ou seja, os portugueses vão receber menos no cheque anual que o Banco de Portugal passa ao Estado. O nosso défice público vai aumentar. O que o novo governo grego quer é uma transferência fiscal do nosso bolso para o deles. Isto é legítimo e talvez mesmo boa ideia. Menos sério é querer fazê-lo desta forma escondida, usando o balanço do banco central, em vez de pedir um cheque directamente numa cimeira.
Passando à segunda proposta grega, é uma excelente ideia indexar os pagamentos da dívida ao crescimento económico. Em vez de vender obrigações, que depois tem dificuldades em pagar durante crises económicas, o governo grego vende antes acções na economia grega. Se a economia cresce menos, elas pagam menos, tal como as acções de uma empresa pagam menos quando os lucros são menores. Quando a economia grega recuperar economicamente, estas acções podem ter um ótimo retorno. Isto é boa ideia não só para as obrigações gregas, mas também para as alemãs ou portuguesas.
Se é tão boa ideia, porque é que não existem estas obrigações em quase nenhum lado do mundo? A última vez que esta ideia foi tentada foi... na Argentina em 2002, em pequenas quantidades. Inicialmente, tudo correu bem. Mas uns anos depois, o governo argentino "lembrou-se" que é ele que produz as estimativas do PIB. As obrigações só pagavam se o crescimento estivesse acima de 3%. Surpreendentemente, a economia argentina cresceu umas centésimas abaixo quando todas as previsões apontavam para bastante mais. No ano seguinte, a fraude foi ainda maior, o mercado destas obrigações desapareceu, e o resultado foi que ainda hoje as estatísticas do PIB argentino não são fiáveis.
O requisito chave para esta ideia funcionar é termos uma confiança cega nos números do PIB gregos. Números que são mais fáceis de manipular do que os números do défice que o Estado grego fabricou durante anos a fio, e vindos de um país governado por pessoas hoje que admiram a política argentina do início do século.
Qual o papel de Portugal nestas propostas? Primeiro, como somos hoje credores do Estado grego, qualquer reestruturação da dívida grega é uma transferência do nosso bolso para o deles. Em contrapartida, qualquer redução da nossa dívida é um ganho nosso. Por isso, é defensável que Portugal tenha uma posição clara e inflexível sobre o assunto: queremos exactamente as mesmas condições que forem oferecidas aos gregos. Se quiserem usar esquemas que só se apliquem a eles, estamos contra, em nome da igualdade na Europa. Se as negociações não forem a lado nenhum, não temos problema com isso. Não defendemos as propostas gregas, não temos de concordar com elas, nem podemos ser contados como aliados de ninguém nas negociações ou gastar qualquer capital em nenhuma negociação. Entramos nas reuniões mudos e saímos calados. Não pedimos nada, mas exigimos que não haja um tratamento especial para os gregos que não se aplique a Portugal e à Irlanda. Suspeito que esta posição portuguesa seria mais uma razão para os restantes países da zona euro rejeitarem as propostas gregas.
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