Viaturas para uso pessoal de todos os 13 juízes, gastos sem justificação, pagamentos indevidos. Isto tudo o Tribunal de Contas (TdC) encontrou na primeira auditoria alguma vez feita ao Tribunal Constitucional (TC). O documento foi divulgado hoje no site da instituição, classificando de “deficiente” o controlo interno e de “desfavorável” a fiabilidade dos documentos de prestação de contas de 2013. Em quase todos os pontos, os juízes do Palácio Ratton alegaram a legalidade dos procedimentos invocando outra interpretação das leis em vigor.
Nas conclusões, o TdC aconselha a promoção de
novos instrumentos de gestão e de avaliação,
a regulamentação adequada de utilização e de controlo dos veículos de serviços gerais (o que incluiu os 11 juízes para além do presidente e da vice-presidente),
a dedução dos valores pagos indevidamente em subsídio de refeição e ainda que sejam
corrigidos os gastos de 21 mil euros não documentados.
O Tribunal de Contas, presidido por Guilherme d’ Oliveira Martins, identifica vários problemas. Uns têm a ver com os gastos, outros com procedimentos administrativos. Mas o mais polémico (e que leva à maior troca de argumentos) prende-se com os carros de serviço.
Segundo o TdC, constatou-se “a atribuição, desde 2000, de veículo para uso pessoal (com cartão de combustível e via verde, com limiares definidos) a todos e a cada um dos juízes conselheiros”. “Dado que só o presidente e a vice-presidente do TC têm direito a veículo oficial, os restantes veículos são de serviços gerais, inexistindo regulamentação adequada para a sua utilização e controlo”, lê-se.
O TC tem 20 automóveis, sendo que deste dois são usados para representação oficial, pelo presidente e vice-presidente, 11 de uso pessoal pelos 11 restantes juízes conselheiros, cinco para serviços gerais do TC e dois ao serviço da Entidade das Contas e Fiscalização dos Partidos. Segundo o TdC, os 11 carros atribuídos aos juízes estão a infringir a lei.
“Admitir, como defende o TC, que todos e cada um dos juízes dos tribunais superiores (TC, TdC, STJ, STA, Tribunais de Relação e Tribunais Centrais Administrativos) tem direito a veículo de uso pessoal teria significativas implicações retributivas que, no nosso entendimento, obrigariam à sua previsão no estatuto dos magistrados”, sustenta o TdC reagindo aos argumentos apresentados por Sousa Ribeiro e que estão em anexo à auditoria. Por outro lado, “seria singular que o presidente do TC tivesse a competência para regular, por despacho administrativo, a afetação para uso pessoal dos veículos da frota da entidade a que preside porque nenhum outro supremo titular dos órgãos de soberania tem essa prerrogativa (Presidente da República, Presidente da AR, primeiro-ministro)”, acrescenta.
Os auditores consideraram também que os juízes receberam montantes indevidos desde novembro de 2012. “Foram processadas e pagas as ajudas de custo por participação em sessão do TC, sem dedução do abono diário do subsídio de refeição, no montante, até dezembro de 2013, de 12 mil euros”. O presidente, José Sousa Ribeiro, por exemplo, recebeu durante este período de tempo (13 meses) mais 1.097 euros que tem que agora devolver e a vice-presidente, Maria Lúcia Amaral 1.127 euros.
“Em 2013, o TC não contabilizou cerca de 13 mil euros correspondentes a uma parcela do acionamento de garantias bancárias (…), não foram contabilizadas transações no montante de 21 mil euros, foram pagos suplementos de disponibilidade permanente a dois dirigentes que optaram pelo vencimento de origem (…), foi pago indevidamente o suplemento de forças de segurança a guardas da GNR [que serviam como motoristas], foram inadequados os processamentos a agentes da PSP dos suplementos de risco, de serviço nas forças de segurança e de disponibilidade permanente”, adianta ainda o texto.
Outra irregularidade encontrada, foi o facto de nos anos de 2011, 2012 e 2013 não ter sido aplicado o regime de avaliação da função pública, o SIADAP. Segundo a resposta de Sousa Ribeiro ao TdC, “esta suspensão será reapreciada” e o TC “levará a cabo, no primeiro semestre de 2015, a avaliação de desempenho dos seus funcionários”.
Lendo toda a auditoria, concluída a 27 de janeiro, verifica-se que nem o serviço de bar/refeitório escapou à análise. Aliás, devido à auditoria este já foi encerrado por estar em situação ilegal. “Verificou-se que se encontrava em funcionamento, em instalações do TC, um bar/refeitório explorado por particulares, a título gratuito, sem que haja evidência de qualquer processo de contratação ou autorização superior que o permita”, diz o TdC, acrescentando que os encargos com as respetivas instalações (luz, água, gás) são suportados pelo TC.
Os auditores concluíram que o recurso ao procedimento por ajuste direto foi “predominante”, não tendo sido observada a publicitação no portal da Internet dedicado aos contratos públicos.
Esta é a primeira vez que o Tribunal Constitucional é auditado pelo Tribunal de Contas, que até agora só tinha passado a pente fino as contas de outros dois tribunais superiores, o Supremo Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Administrativo. Mas nestes casos, as conclusões não foram tão negativas.
Ao Observador, o TdC esclareceu que “o relatório de auditoria, como quaisquer outros relatórios não aplica quaisquer sanções evidenciando um facto suscetível de constituir infração financeira por entender, ao contrário do Conselho Administrativo do Tribunal Constitucional, que não há disposição habilitante para os pagamentos efetuados, que são de reduzido montante”.
O tribunal presidido por Guilherme d’ Oliveira Martins reconhece que “alguns factos relatados referem-se a situações que se prologam há vários anos, verificando-se que a legislação aplicável nem sempre é clara” e lembra que o Tribunal de Contas “tem manifestado, reiteradamente, a opinião de que os presidentes dos tribunais superiores não devem ser exatores orçamentais até porque, dadas as suas funções jurisdicionais e de representação institucional, não terão certamente a disponibilidade que a gestão corrente exige” e que “a resolução desta situação cabe naturalmente ao poder legislativo”.
As explicações de Sousa Ribeiro, Moura Ramos e Cardoso da Costa
Na carta de exercício do contraditório que envia ao Tribunal de Contas, o presidente do TC declara ter encarado aquelas conclusões com “verdadeiro desgosto e preocupação” por considerá-las “injustas”. Sousa Ribeiro manifesta “o firme propósito de, com a brevidade possível, corrigir essas situações e seguir as recomendações concretas”. Mas deixa a crítica sobre o “tom apodítico, onde não perpassa sombra de uma dúvida” pois o TdC revela “uma visão desfocada do estatuto constitucional do Tribunal e do consequente regime a que está submetido”.
A auditoria tem 79 páginas e a resposta de Sousa Ribeiro 73.
A questão dos carros, por exemplo, é a que mais divide os auditores do Tribunal de Contas e os juízes do Tribunal Constitucional (TC) e alimenta mais troca de argumentos. Ora, para os magistrados do Palácio Ratton, deve ser “afetada ao uso pessoal de cada juiz (…) uma viatura automóvel da frota do Tribunal, a qual poderá ser conduzida pelo próprio, designadamente enquanto o quadro de pessoal do Tribunal não estiver dotado de um número de motoristas suficiente para a condução de cada uma dessas viaturas”.
Na origem, o que separa o TC do TdC, é a natureza orgânica do primeiro. Os juízes do Ratton consideram que o TC “não é um tribunal supremo do sistema judicial, mas um órgão constitucional autónomo, colocado à parte dos restantes tribunais” e que, por isso, “goza, e deve gozar, de autonomia administrativa e financeira ‘por imperativo constitucional’”. Porquê? Porque detém “receitas próprias”; “aprova o projeto de orçamento que deva ser financiado pelo OE e aprova o orçamento das suas receitas próprias e das correspondentes despesas”; e, “relativamente à execução orçamental, exerce a competência ministerial comum em matéria de administração financeira”.
“De facto, por decisão do poder político da época, o TC passara (ou passaria) a dispor de uma frota automóvel com um número de unidades capaz de propiciar a utilização individualizada pelos respetivos magistrados, dentro de uma lógica de estruturação orgânica e funcional dos serviços de apoio direto ao corpo dos juízes à imagem da composição dos gabinetes ministeriais (…)”, defendem os juízes do Constitucional.
No entanto, os auditores do TdC consideram que a leitura dos juízes do Ratton sobre a suposta autonomia financeira e administrativa do Tribunal nasce de uma interpretação errada da “terminologia mais coloquial” utilizada no preâmbulo do diploma. Ora, a isto, o Constitucional responde que “‘autonomia financeira’ é uma designação com um preciso significado técnico-jurídico, insuscetível de se moldar a contextos de linguagem ‘mais coloquial’.
Os ex-presidentes do TC, Moura Ramos e Cardoso da Costa, também exerceram o contraditório, enviando cartas ao TdC. Fora este último que em 2000 assinara o despacho que autorizou pela primeira vez carros para todos os juízes. Os dois sustentam a legalidade da situação e Cardoso da Costa revela mesmo que ela deriva de um acordo entre os vários partidos e também do acordo do Governo em funções na altura porque foi este que autorizou a despesa para comprar os ditos automóveis.
Cardoso da Costa também alega que o TC têm autonomia financeira para decidir sobre, neste caso, o número de viaturas, mas lembra ainda que à data os partidos políticos entenderam que todos os juízes “deveriam ter à sua disposição, facultado pelo Estado, um veículo automóvel próprio, atentos naturalmente o relevo, a particularidade e o supremo lugar institucional das suas funções, à semelhança do que sucede em outros países, como a Espanha ou a Itália”.
A auditoria inclui uma longa explicação do presidente do TC sobre as várias irregularidades detetadas, admitindo que graças à “sua realidade funcional de organização de pequena dimensão e com escassez de recursos, mormente humanos”, o TC pode não ter cumprido todas as “exigências formais” previstas na lei.
Além disso, no documento assinado pelo presidente do TC, Joaquim Sousa Ribeiro, o tribunal fez questão de sublinhar que “nunca as falhas e as deficiências formais de organização e controlo agora identificadas (…) deram azo a consequências que se traduzissem em perdas patrimoniais para o Estado, por conduta irregular de algum membro ou funcionário do TC”.
O TC começa por explicar algumas das medidas já tomadas para regularizar as contas de Ratton, nomeadamente a cessão do “contrato de arrendamento de um prédio contíguo ao Palácio Ratton, onde funcionava a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, realojada no edifício do Tribunal (…)”; a renegociação dos “contratos de prestação de serviços de comunicações móveis, com redução anual do preço em 45,2%: a redução de 50% nas despesas relacionadas aos “seguros individuais de automóvel”; o despedimento de “cinco das 11 secretárias”; e a revisão dos “contratos de manutenção dos equipamentos de WC”.
Na não dedução do subsídio de refeição nas ajudas de custo abonadas por presenças nas sessões, o Constitucional entende que “uma vez que a ajuda de custo é abonada por cada dia de sessão do tribunal em que os juízes participem, e por mais dois dias por semana, independentemente da deslocação implicar almoço, jantar ou dormida, não pode afirmar-se que, neste caso, o pagamento da ajuda de custo corresponda ao pagamento de duas refeições e alojamento”.
Sobre os serviços de bar/refeitório, Sousa Ribeiro explicou que a situação detetada era uma “solução precária e de último recurso, de caráter tendencialmente transitório”. A empresa contratada desistira e o TC decidiu pagar uma das funcionárias dessa empresa, que entretanto tinha ficado desempregado com o fim do contrato.
Uma solução de recurso motivada pelo “interesse institucional na continuidade dessa prestação de serviço, dado que o almoço conjunto propiciava um momento de encontro e de troca de ideias, abrangendo um número não despiciendo de funcionários, em particular assessores”, explicou o TC, para depois acrescentar que “deixará de propiciar o serviço de almoço, nas suas instalações”, a partir de 1 de fevereiro de 2016.