Maria de Fátima Bonifácio:
"O Estado não se ausenta nem se demite, mas já não pode garantir tudo. É para este tempo de incerteza, insegurança e risco que Passos nos quer preparar"
Costa pensa com a cabeça keynesiana do século XX, quando havia fronteiras, alfândegas e moeda nacional. Passos pensa na globalização do século XXI, que rege um mundo sem distâncias e que já não dorme.
A minha decisão está tomada desde a “demissão irrevogável” de Paulo Portas (Julho de 2013). Passos Coelho confirmou-se como um primeiro-ministro à altura de situações de emergência, depois de durante dois anos já se ter mostrado à altura de situações de desespero.
Herdou do anterior governo socialista uma situação desesperada. Estava-se a um pequeno passo da bancarrota. Na altura, toda a gente sensata e responsável viu no apelo à Troika o único meio de evitar que o Estado, sem acesso aos mercados, cessasse pagamentos a funcionários, pensionistas, fornecedores e credores.
O PSD e o CDS, e também o PS, acharam que esse apelo era indispensável e urgente. Sócrates, o “animal feroz” atacado de lunatismo terminal, opunha-se – sem vislumbre de solução. Muita gente, incluindo o seu ministro das Finanças, instou com ele. Mário Soares disse depois ao Público: “Eu queria que ele pedisse o apoio e ele não queria. Discutimos brutalmente.”
No debate televisivo do dia 9, António Costa teve o supremo despudor de afirmar que fora Passos quem chamara a Troika. A mentira, descarnada, é imprópria de um candidato a primeiro-ministro; e autoriza que o achemos capaz de tudo. Frente a frente estavam dois homens de carácter muito diferente.
Ouço e leio que no debate se falou demasiado do passado. Qual é o espanto? É também o passado que nestas eleições vai a julgamento; é o descalabro de José Sócrates e seus acólitos que vão a juízo; são as responsabilidades do Partido Socialista que estão em causa. Não há como fugir a isto.
Porque foram os danos que “isto” infligiu ao País que determinaram a “austeridade” que Passos se viu obrigado a administrar. Pagou em impopularidade pelos erros dos outros. Tornou-se o culpado de tudo, incluindo a meteorologia. O PS, tão sensível ao sofrimento do povo, cobrava ânimo a cada medida dolorosa, a cada notícia tormentosa: quanto pior, melhor – aqui residia a sua possibilidade de redenção.
Não só aqui: também na arte de incutir no público a ideia caricata de que Passos sofria de sanha punitiva e fanatismo neo-liberal; sadismo e cegueira ideológica, portanto. Esta propaganda mendaz foi fazendo o seu caminho. Muita gente se convenceu de que a “austeridade” era afinal desnecessária e contraprodutiva, pois abismaria Portugal numa infindável e suicida “espiral recessiva”.
Também o zelo em obedecer à diabólica Sra. Merkel e o gosto de vergar a cerviz perante a “Europa” eram desnecessários e um sinal vergonhoso de cobardia: Passos não ousava elevar Portugal à altura da sua relevância no concerto europeu. Surgiu o Syriza para dar a Merkel uma lição de humildade, e a Passos uma lição de patriotismo, coragem e dignidade. O “conto de crianças” acabou abjectamente, como qualquer pessoa sensata logo podia prever.
António Costa prescindiu da sensatez e preferiu apaziguar a sua cauda de radicais dentro do PS e olear as suas relações com a extrema-esquerda, que sonhava vir a amestrar e a usar. Festejou com entusiasmo a vitória do Syriza e saudou os ventos de mudança e bonança que os valentes gregos soprariam na Europa. Com o colapso do colosso grego, mudou de discurso e de rumo. É um líder que navega ao sabor das marés.
Há muito que ninguém se atreve a falar em “espiral recessiva”. Há muito que a Troika partiu; Portugal fez uma saída limpa. Quem disse que era fácil e faria melhor, que se apresente. Todos os indicadores importantes melhoraram; o desemprego caiu de 17,1% para níveis inferiores aos da pré-crise, 11,9%. O PS – do PC não vale a pena falar – desvaloriza, porque os números o deixam destrunfado. Nada me parece mais natural e necessário do que lembra e reivindicar o mérito pela limpeza do ajustamento financeiro.
Temos diante de nós dois homens, duas personalidades, dois estilos, dois caracteres – e dois caminhos a seguir. Em essência, apenas interessam duas coisas: os modelos que corporizam, a cepa dos respectivos fiadores.
Costa, como revelou a infelicíssima aclamação do Syriza, aliada a um chuveiro de promessas e medidas aberto dia sim, dia não, não me parece um homem confiável. Tanto mais que hesita sobre as alianças a escolher, e não conseguiu cerzir as facções que se guerreiam no PS.
Costa elege o consumo e o investimento público como alavancas do crescimento; exalta a “economia do conhecimento”. Mas o mercado interno é exíguo, o investimento público limitado pela escassez de meios do Estado, e a anacrónica estrutura empresarial do País, aconchegada na rotina, não comporta a modernização tecnológica em larga escala. O modelo não passa do prolongamento, com menos “faraonismo”, do que nos trouxe até aqui. Desde 1996 que Portugal cresce pouco ou nada.
De Passos, como fiador, já disse o suficiente. Sublinho a integridade, a constância e a intrepidez, que o sentimentalismo indígena confunde com indiferença. Aposta na saúde financeira do Estado, na iniciativa privada voltada para o exigente mercado externo, que a prazo arrastará a gradual transformação da nossa estrutura económica arcaica.
Costa pensa com a cabeça keynesiana do século XX, quando havia fronteiras, alfândegas e moeda nacional. Passos pensa na globalização do século XXI, que rege um mundo sem distâncias e que já não dorme. O Estado não se ausenta nem se demite, mas já não pode garantir tudo. É para este tempo de incerteza, insegurança e risco que Passos nos quer preparar. Obviamente, voto Passos.
Historiadora
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