Não podemos permitir que um Partido, um Governo continue a asfixiar desta forma o Estado de Direito e a Democracia. Os problemas de rule of law não são só na Hungria ou em Malta.
Nos últimos meses têm sido vários os exemplos do Governo de “facadinhas” na democracia.
- Desde a nomeação de um membro do Governo para Governador do Banco de Portugal (BdP),
- passando pela substituição da candidata mais qualificada para a Procuradoria Europeia,
- pela proposta de lei do Governo relativa à contratação pública
- chegando por fim à dispensa por telefone do Presidente do Tribunal de Contas (TdC),
A pandemia vai paulatinamente servindo de desculpa para o enfraquecimento das instituições democrática. Mas, portugueses e portuguesas, felizmente o bom Governo que temos, tem em preparação a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024 (ENCC), essa poção que nos “livrará de todos os males” ainda que na prática a actuação Governamental vá contra os princípios da mesma. A Estratégia Nacional de Combate à Corrupção não passa de uma cortina de fumo para esconder as movimentações quotidianas de um Governo que em vez de a combater, a legaliza e permite.
Vamos por partes. A transferência de Mário Centeno do Ministério das Finanças directo para o BdP é um caso paradigmático, pejado de “red flags” – sobre o qual já tive oportunidade de escrever [1] — e fortemente marcado pela existência de conflitos de interesses e até falta de transparência no processo de nomeação. Este episódio foi o resultado de um negócio político muito conveniente entre António Costa e Mário Centeno.
Recentemente, veio a público que a procuradora Ana Mendes Almeida – que ordenou buscas ao Ministério da Administração Interna por suspeitas de corrupção – tinha sido escolhida por um júri internacional nomeado pela Comissão Europeia para o Gabinete da Procuradoria Europeia. Mas (pasmem-se!), acabou por ser preterida pelo Governo, que preferiu o candidato classificado em segundo lugar! Coincidências e meritocracia…socialista.
Ora, no final da semana passada fomos presenteados com notícias sobre os fundos europeus e, utilizando a desculpa da emergência da recuperação económica, a vontade do Governo em adulterar etapas na Contratação Pública, através da proposta de lei agora em discussão. A proposta do Governo propõe trocar o princípio da concorrência, pelo princípio da preferência, isto é, substituir o concurso, pelo convite. Num parecer demolidor, o Tribunal de Contas sugere que a referida proposta de lei levanta sérios riscos de “conluio, cartelização e corrupção”, chocando mesmo com a ENCC.
Perante o desconforto causado pelo parecer, tudo indica que o Primeiro-Ministro não reconduzirá o actual Presidente do TdC, o juiz Vítor Caldeira. De facto, o TdC tem sido incómodo ao Governo e a dirigentes socialistas pela forma independente e crítica como tem exercido as suas funções. Quem não se lembra dos ataques do Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, ao TdC acusando o tribunal de “fazer relatórios de baixíssima qualidade técnica” e “política pura” [2]? É caso para dizer que quem se mete com o PS leva.
Face à magnitude da crise económica causada pela pandemia há um consenso generalizado relativamente à necessidade de rapidez no acesso aos fundos europeus. No entanto, isso não pode acontecer à custa do enfraquecimento do quadro legal da Contratação Pública em vigor, contra as regras do mercado único, limitando fortemente a concorrência, e aumento do “risco de ocorrência de práticas ilícitas de conluio, cartelização, e até mesmo de corrupção na contratação pública” conforme denuncia o Tribunal de Contas.
Vários académicos têm-se debruçado sobre o impacto da boa governança (governance) na eficiência da gestão dos orçamentos em contractos públicos e as conclusões de alguns artigos afirmam, por exemplo, que um quadro legal e regulamentar robusto está directamente relacionado com menores desvios orçamentais. No caso português, o Código dos Contractos Públicos (CCP) de 2008, (porque seguindo a orientação das diretivas europeias de contratação pública), revelou-se bastante eficaz na redução de desvios. A introdução e aplicação de regras europeias de contratação pública (nomeadamente através da transposição de directivas e do direito da concorrência) conduzem a uma melhoria significativa na capacidade do sector público, devido a um maior rigor pelo cumprimento dos limites de despesa e menores desvios nos custos e, portanto, maior eficiência na gestão orçamental [3].
Mas continuamos a precisar de desburocratizar (sem reduzir a concorrência e transparência), e diminuir os custos de contencioso para as micro, pequenas e médias empresas. Algo que a presente lei de 2008 e apesar das suas cinco alterações só entre 2008 e 2010, ainda não foi capaz de fazer adequadamente.
Muitos empresários – e especialistas de contratação pública – referem que a proposta é perniciosa na alteração ao artigo do ajuste directo. Hoje, até 5.000 euros, é possível adjudicar contra factura, bastando ter o documento de quitação. A proposta propõe que seja possível adjudicar até 15.000 euros, mas todos (!) os contractos têm de tramitar na plataforma electrónica. Considerará o Governo este um exemplo de menos burocracia? Na prática, provavelmente, não é.
Mas, num cenário de eventual aprovação da proposta de lei em discussão o Presidente da República talvez tenha aqui uma última oportunidade para mostrar aos portugueses que não se revêm num Governo que se confunde com o Estado (e num Partido que se confunde com o Governo!), e que promove o compadrio generalizado, não existe só para dar colo ao governo. O veto presidencial a esta proposta de lei é uma necessidade para a decência e higiene do sistema político português.
A percepção de opacidade na gestão de processos públicos mina a confiança das pessoas nas instituições. São muitos os casos denunciados num dia e esquecidos no outro. E infelizmente não vemos o Governo agir em conformidade com o que apregoa diariamente nos jornais. Será coerente o Governo andar há um ano com a bandeira do combate à corrupção, apresentar estratégias de combate à corrupção e depois abrir portas à corrupção através de uma proposta de lei e, pelo caminho, “despedir” o Presidente de um órgão independente porque é incómodo?
Não podemos permitir que um Partido, um Governo continue a asfixiar desta forma o Estado de Direito e a Democracia. Os problemas de rule of law não são só na Hungria ou em Malta.
[1] (acesso pago) https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2482/html/primeiro-caderno/opiniao/banco-de-portugal-a-salto-ministerial?fbclid=IwAR0lLgWPx6KQi9ynzwfruGzR_pYlcBasxVzuBNtoAu4KjDoQ-lo9TOIQC0o
[2] https://eco.sapo.pt/2020/01/16/medina-ataca-tdc-sobre-imoveis-da-seguranca-social-relatorio-e-de-fraca-qualidade-e-faz-politica-pura/
[3] Francisco Pinheiro Catalão , Carlos Oliveira Cruz & Joaquim Miranda Sarmento (2020): Public management and cost overruns in public projects, International Public Management Journal,
0 comentários:
Enviar um comentário