Na passada sexta-feira desloquei-me ao Norte Shopping e fui ver o filme Match Point do Woody Allen. Gostei. É daqueles filmes que nos fazem pensar depois de o vermos. No final percebemos que o crime compensa.
Esta é a versão redutora. O filme tem muito mais.
Match Point tem um início muito revelador do próprio filme, pois vemos Chris a ler “Crime e Castigo”, de Dostoievsky. Chris passa uma enorme parte do filme dividido entre o bem estar e a riqueza que a sua mulher e respectiva família lhe oferece e a paixão desenfreada que sente por Nola. As constantes escapadelas são crimes no Tribunal da Consciência, mas Chris não parece preocupado. Ele tinha o melhor de dois mundos. O pior foi quando Nola decidiu que havia de ser tudo ou nada, obrigando-o a decidir. Chris não é uma personagem da profundidade de Dostoievskiana Raskolnikov, mas o drama moral do dilema e dos seus actos está presente. O filme começa com uma frase-síntese de toda esta formulação, que cito de memória: a vida é como a bola num jogo de ténis, sempre de um lado para o outro; mas, por vezes, acerta no topo da rede e todos ficamos a pensar se ela vai cair do nosso lado, e perdemos, ou vai cair do outro, e ganhamos… Chris é um ex-tenista profissional que quase alcançou o topo. Agora dedica-se a ensinar ténis num exclusivo clube londrino, onde ganha para viver e onde conhece Tom, herdeiro de uma grande fortuna. Os dois entendem-se e o primeiro convida-o para ir à ópera com a família. Com gostos culturais clássicos, Chris aceita. Conhece Chloe, irmã de Tom, acabando os dois por se envolver emocionalmente. Tempos depois, numa festa em casa dos pais da namorada, Chris conhece a sensual Nola, noiva de Tom, por quem fica imediatamente apaixonado. Depois de um affair entre ambos, Nola desaparece. Chris casa com Chloe, o sogro oferece-lhe tudo, incluindo um emprego de topo e a vida não poderia correr-lhe melhor, não fosse o caso da sua mulher não engravidar. Eis senão quando Chris se volta a cruzar com Nola, ambos reatando a antiga paixão, mas de forma ainda mais intensa. Forçado, por uma Nola grávida, a escolher entre as duas mulheres, Chris vai hesitando, até que, finalmente, decide acabar com o dilema…
Resumidamente e desprovido de imensos pormenores que fazem a diferença, eis o resumo de, sensivelmente, dois terços do filme. A parte restante não a vou revelar, mas posso garantir que é fantástica.
Então, com a bola em cima da rede, será que vai cair do lado da esposa fiel ou da amante lasciva?
Woody Allen acertou em cheio nos actores de Match Point. Jonathan Rhys Meyers está absolutamente soberbo no papel de Chris. O filme gira todo à sua volta, mas o actor tem qualidade suficiente para se desenvencilhar de momentos tão diferentes e de amplitude tão vasta como os de intensa paixão e os de profundo desespero. Scarlett Johansson está sensualíssima: no vestir, no olhar e, especialmente, na voz, rouca e quente. À sua volta, uma mão cheia de secundários que jamais ofuscam as verdadeiras estrelas do filme, antes as fazem brilhar ainda mais.
Há mesmo muito tempo que não via um filme de Woody Allen tão bom. Tudo, em Match Point, roça a perfeição. O argumento é soberbo, desenvolvendo-se numa feliz conjugação de racionalidade e surpresa; os actores, magníficos; a realização oscila entre os grandes planos, mostrando nas faces das personagens todos os contornos da história, e planos abertos, onde Londres ganha um enquadramento diferente aos olhos de um americano…
E por falar nisso, não deixa de surpreender o virtuosismo de Woody Allen. Newyorker obsessivo, passou toda a sua carreira a mostrar a sua a sua cidade, bebendo os seus sons sofisticados com especial destaque para o jazz, a sua cultura pop e pseudo-intelectual de vanguarda, sem esquecer os mais belos planos urbanos da história do cinema. Mas, agora, a convite da BBC, foi filmar para Londres. Quem pensar que esta mudança geográfica deixou Allen “como peixe fora de água” está totalmente enganado. O realizador vestiu a pele britânica que lhe assentou como uma luva. Assim, em vez de edifícios arquitectonicamente modernos, temos mansões seculares. Em vez de modernos analistas da alma, como Freud e Jung, temos esse espeleólogo de almas que dá pelo nome de Dostoievsky. Em vez de jazz, temos ópera. Com tais ingredientes, é óbvio que o resultado só poderia ser um filme verdadeiramente clássico, uma tragédia como “La Traviatta”, de Verdi, que Chris vai assistir no Royal Albert Hall (e não ao Rádio City Music Hall…).
Há quem diga que os grandes filmes são aqueles que nos possibilitam várias camadas de leitura, ou análises válidas a partir de diferentes pontos de vista. A isto adicionaria uma outra característica: são aqueles que nos fazem pensar muito depois de termos saído da sala de cinema.
Game, set and match: Mr. Woody Allen.