Revelar o "Bonfim desconhecido" e dinamizar uma freguesia a partir do turismo. Daniela Alves e Hélder Barbosa agarraram um projecto desta junta do Porto e querem pôr a cidade a olhar para o oriente
Quando o desafio lhes caiu no colo, o "mundo" deles não ia muito além das Fontainhas e da Biblioteca Municipal do Porto. O Bonfim era apenas freguesia de passagem imperiosa em noites de São João e local de mergulho em arquivos e longas investigações. Daniela Alves e Hélder Barbosa assustaram-se — mas arriscaram. E para lá do “mundo” deles, havia mesmo um hemisfério novo: desde o Verão passado, com o projecto Explore Bonfim, tentam mudar o mapa turístico e cultural do Porto. Pode esta freguesia oriental integrar este roteiro?
O quadro é um velho conhecido dos bonfinenses. Neste pedaço da urbe onde quase tudo se mistura — centro e periferia, habitação rica e pobre, espaços comerciais e industriais — o turismo não entra. “Estamos, de facto, fora desse mapa”, comenta o presidente da junta José Manuel Carvalho. Mas não irremediavelmente. O ensaio para a mudança começava ali, diagnóstico em cima da mesa: José Manuel Carvalho pediu ajuda ao geógrafo Jorge Ricardo Pinto, morador “militante” e estudioso da freguesia, e ele convocou Daniela e Hélder, dois dos seus alunos no Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo (ISCET). O Explore Bonfim foi uma “surpresa” mesmo para quem começou por imaginá-lo: “Descobri coisas a partir do projecto e isso mostra como ele pode ser importante”, admite o autarca independente eleito nas listas de Rui Moreira.
Jorge Ricardo Pinto, consultor do projecto, não podia estar mais de acordo. Os alunos, congratula-se, “revelaram um Bonfim desconhecido” e mostraram como uma área “vista como residencial e pacata” tem, afinal, “eventos quase diários”. Para os divulgarem, a dupla de licenciados em Turismo e mestrandos em Turismo e Desenvolvimento de Negócios (a dias de defender a tese) criou um website e uma página de Facebook. E, bem antes disso, fez-se ao terreno — e à já conhecida Biblioteca Municipal.
A monografia da freguesia, escrita por Jorge Ricardo Pinto, leram-na da primeira à última página. “Começámos a partir daí a interiorizar a identidade do espaço”, recorda Hélder Barbosa. Depois, foram caminhadas a mais caminhadas, quilómetros e mais quilómetros, percorrer o Bonfim de norte a sul. Anotar, fotografar, escrever. Às tantas, do território pouco turístico sentiam-se capazes de fazer vários roteiros... turísticos. “Havia muito mais do que imaginávamos.”
Moram no Bonfim três das seis pontes portuenses — Infante, Maria Pia e S. João — e mais de uma centena de edifícios classificados como imóveis de interesse público. Tem-se, a partir das Fontainhas e do seu miradouro, umas das mais belas vistas sobre o rio da cidade. Nesta freguesia oriental — a mais pequena e com menos população (30 mil) do Porto desde a reforma administrativa de 2013 — está o Prado do Repouso, o primeiro cemitério público municipal, inaugurado em 1839 e considerado um “museu ao ar livre”. Encontra-se o impressionante Parque de Nova Sintra, um considerável património religioso, a casa-oficina do pintor e poeta António Carneiro, o Museu Militar ou a Faculdade de Belas Artes.
Nascer e viver no oriente do Porto
É uma ligação secular aquela que liga Jorge Ricardo Pinto ao Bonfim. Estava ainda o território a um ano de ser constituído como freguesia — em Dezembro de 1841, por decreto de Costa Cabral, durante o reinado de D. Maria II — quando o pentavô do geógrafo se instala por ali. O investigador descobriu-o numa reconstituição da árvore genealógica da família: tanto o lado materno como o paterno viveram pelo oriente da cidade desde o século XIX. O avô morou numa ilha na Rua de S. Victor até ao fim dos seus dias. E Jorge Ricardo Pinto foi crescendo por lá nos fins-de-semana: “Os meus pais, bonfinenses, casaram-se e foram viver para a periferia. Por isso, como muita gente do Porto, sou suburbano”, sorri. Ou foi, até ele próprio se casar e regressar a “casa”, uma moradia mandada construir pelo bisavô e recuperada por ele no início deste século.
Na ambição do Explore Bonfim não está uma competição com o turismo mediático e em alta do Porto. A freguesia está longe do mar e do centro histórico e, de certa forma, começa onde a Baixa termina, no jardim de S. Lázaro. “Há de sofrer sempre desse problema”, admite o docente, autor da obra “O Porto Oriental no século XIX”. Mas numa cidade tão focada no centro “o alargamento para outra oferta” pode ser, de facto, um passo natural.
Daniela Alves e Hélder Barbosa, 23 anos, são naturais da Maia — e sonham um dia fazer algo por esta cidade —, mas entusiasmaram-se definitivamente com a freguesia portuense. E com o contentamento à volta deles. Quando começaram a contactar os operadores turísticos locais, a reacção começava por ser de surpresa — mas a satisfação de ver alguém agarrar o território delas vinha logo depois. Os alunos do ISCET têm um completo inventário das instituições do Bonfim e acompanham-nas de perto. Todas as semanas fazem uma “newsletter”, divulgam os eventos de véspera no Facebook e criaram um repositório fixo de informação no website. Mas querem ir mais longe: aos quatro circuitos turísticos traçados — “os jardins”, “as pontes”, “as igrejas e capelas” e “um dia no Bonfim” — desejam, em breve, juntar outros, como um circuito por antigas fábricas e outras marcas de um território fortemente marcado pelo industrialização no século XIX. E aos eventos dinamizados por instituições da zona, gostavam de juntar os do Explore Bonfim.
CHIP, todo o Porto a partir de um edifício
Aposta ganha são os percursos culturais feitos na freguesia através do CHIP — Culture, Heritage and Identity in Porto (CHIP), um projecto do ISCET coordenado por Jorge Ricardo Pinto e do qual a dupla do Explore Bonfim faz também parte. Com seis anos de trabalho celebrados no mês de Fevereiro, o CHIP procura dar a conhecer a cidade a partir de edifícios quase desconhecidos. É um laboratório de investigação para alunos de licenciatura e mestrado daquela instituição e já deu até origem a um livro: “O 285 da Rua de Cedofeita”, morada do próprio ISCET, conta 150 anos de história do Porto a partir deste espaço, outrora importante salão de arte por onde passaram Abel Salazar e Júlio Pomar e onde morou o presidente da Câmara do Porto Francisco Pinto Bessa.
O trabalho, explica Jorge Ricardo Pinto, passa pela identificação de um espaço, a investigação da sua história (através de registos prediais e paroquiais, licenças de obras, arquivo histórico) e a construção de uma narrativa: seja a partir do arquitecto ou engenheiro responsável pela obra, dos antigos moradores ou outros pretextos. “Ajuda a rever ideias preconceituosas sobre os territórios e lugares. Temos tido um papel importante na reintrodução de determinadas peças da cidade, desde a pequena à grande história.”
Há, na cidade que tem apaixonado os turistas, narrativas por desvendar. E algumas estão no Bonfim. O projecto criado pela junta local quer “dar visibilidade” a esse lado oculto — mas este desafio, salienta José Manuel Carvalho, não é apenas turístico. “Ao não perder de vista esse lado estamos a pensar na população. Ao chamar turismo melhoramos a vida dos moradores e comerciantes. É um ciclo.”