PACHECO PEREIRA: Acho absurda a polémica muito maison, ou seja, muito redes sociais, sobre a entrevista de Goucha a Mário Machado.
Lá vou pela enésima vez dizer que o verdadeiro sentido da liberdade de expressão não é para as opiniões de que gosto ou com que concordo, é para aquelas de que discordo, que penso serem ofensivas e que me podem ser repulsivas. É esse direito que defendo quando defendo a liberdade de expressão, o resto é demasiado cómodo. Numa altura em que o tribalismo cresce e as pessoas só ouvem e vêem o que gostam lá pelos lados da sua tribo, vendo-se sempre ao espelho que nunca lhes responde como o da Rainha Má, convém lembrar este princípio básico da liberdade e da democracia.
É por isso que acho absurda a polémica muito maison, ou seja, muito redes sociais, sobre a entrevista de Goucha a Mário Machado, skinhead, culpado de crimes, preso várias vezes, homem violento e com ideias de extrema-direita, que faz parte de um movimento nacionalista radical e que acha que Salazar faz muita falta ao país.
E depois? Convivo muito melhor com este tipo de defesa de Salazar, declarativo, simplista, rudimentar, ignorante do que foi Salazar e o Estado Novo, ou se calhar demasiado sabedor e saudosista do que ele fez, do que com o branqueamento sofisticado dos nossos “brandos costumes”, com comparações absurdas do número de mortos, que por singular coincidência não incluem nunca os mortos da guerra colonial, ou elaborações entre o totalitarismo e o autoritarismo que, também por singular coincidência, desculpam o autoritarismo em nome das maldades do totalitarismo. Claro que Estaline matou muito mais gente do que Salazar e a sua ditadura (Hitler também), mas a comparação é falseada à cabeça, porque não tem sentido histórico nem político.
Voltemos à entrevista de Goucha a Mário Machado. Goucha não denunciou os crimes de Machado e classificou as suas ideias brandamente de “polémicas”, mas fez-lhe uma das perguntas mais certas que se lhe poderia fazer confrontando-o com a sua circunstância pessoal, dele Goucha, de viver há muitos anos com um homem com quem é casado e queria saber se isso incomodava Mário Machado. E este respondeu-lhe surpreendentemente bem. Isto redime a entrevista e é muito mais significativo do que o salazarismo póstumo.
Claro que as ideias de Mário Machado são “perigosas”, como são as dos milhares de comentadores pelas redes sociais adentro que têm saudades de Salazar e de outras coisas piores. Mas são “perigosas” porque são suplementares ao ascenso populista que se verifica na sociedade portuguesa, em que o nacionalismo e o saudosismo da ditadura são muito menos importantes do que muitas outras coisas novas, recentes, modernas e que nasceram da degradação interior da democracia, não do salazarismo morto e enterrado. Podem ter a certeza que um “novo Salazar” se aparecer será muito mais desempoeirado nos costumes, mais yuppie, menos beato, menos, muito menos temeroso do capitalismo, e não terá medo da exposição televisiva, bem pelo contrário.
Acresce que as ideias podem ser “perigosas”, mas ele tem toda a legitimidade para as defender e nós para o rebater e contrariar. No caso da entrevista, nem sequer se colocam os crimes que a Constituição prevê, e eu sempre considerei essa parte da Constituição, que criminaliza opiniões, realmente afrontosa da liberdade de expressão. Mas não há qualquer matéria de crime no que ele disse e não se pode confundir as críticas que se podem fazer à condução da entrevista com a ilegitimidade de a fazer e de ouvir Mário Machado.
Por isso, vejo como igualmente “perigoso” o apelo à censura do SOS Racismo e do Sindicato dos Jornalistas, assim como a vontade de usar a ERC para policiar a liberdade de expressão. Do mesmo modo, embora as declarações do ministro da Defesa — que não se sabe bem porquê entendeu pronunciar-se sobre o assunto — sejam uma matéria de opinião, com o mesmo estatuto das de Mário Machado, contêm uma análise errada do “perigo” comunicacional.
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