Os capitães de Abril estiveram ausentes da celebração oficial da efeméride. É um direito que lhes assiste. Incomoda-me, contudo, o teor do manifesto da Associação 25 de Abril e das declarações de Vasco Lourenço, contestando a legitimidade da "democracia formal" e invocando o "espírito de Abril".
É claro que, ao contrário do que se lê no manifesto original do MFA, esse "espírito" não assentava na liberdade democrática. Representava uma opção ideológica oculta que rapidamente foi imposta aos portugueses entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro. Durante esse período, a liberdade foi condicionada e a democracia esteve reservada à minoria que concordava com a agenda caudilhista. Em poucos meses, a descolonização, que era necessária, foi feita com irresponsabilidade. Enquanto os militares se dividiam em grupelhos e fações, Portugal arruinou-se. O aparelho produtivo foi nacionalizado e destruído. Os direitos, liberdades e garantias, que haviam sido prometidos, foram raptados por alguns, que reclamavam o direito adquirido de o fazer em nome do interesse do povo.
Felizmente, esse mesmo povo não se comoveu com os argumentos dos autores da revolução e reclamou-a para si. Agradecendo-lhes a liberdade, recusou a sua tutela. Por isso, não correspondeu ao apelo do MFA para se abster nas eleições para a Assembleia Constituinte.
Desde então, os partidos políticos democráticos obtiveram resultados esmagadores em todos os atos eleitorais. A democracia aprofundou-se, apesar de ficar refém de uma Constituição com peias e teias que foram impostas pelo pacto MFA-partidos. O regresso dos militares aos quartéis, no distante ano de 1982, resultou de uma deliberação por maioria qualificada dos representantes eleitos pelo povo e foi útil para a sociedade, porque terminou com o clima de putchismo que até aí se viveu, e contribuiu para o prestígio da instituição militar, que hoje é inatacável.
A Associação 25 de Abril é um fóssil onde se guardam as memórias desse tempo, e que reúne os autores da revolução. Nela coexistem várias fações. Estão lá aqueles que no 25 de Novembro estiveram em lados opostos das barricadas: os derrotados, e os outros, os vencedores desse dia, entre os quais muitos que, por convicção, queriam que o país seguisse o rumo da liberdade, e ainda os sobreviventes que, ao passarem para o lado certo no momento adequado, fizeram uma escolha inteligente, até porque já tinham apanhado um valente susto no "Verão quente".
A sua intervenção política e social é rara, só ocorre por ocasião do aniversário da Revolução dos Cravos ou quando alguns dos seus membros - seja Vasco Gonçalves, Rosa Coutinho ou Corvacho - se confronta com a mortalidade, e suscita dos camaradas uma última e cega homenagem.
Entre estes senhores de provecta idade, há quem sinta que o poder político é ingrato. Alimentam-se do saudosismo de um tempo em que confiscaram o poder e, depois, largos setores da economia. Afligem-se porque vivemos numa democracia adulta, em que a maioria dos portugueses, que lhes é reconhecido por terem derrubado um regime anacrónico, não tem todavia saudades da sua passagem pelo poder, nem os vê como fonte de inspiração ideológica ou cívica.
Naturalmente, Vasco Lourenço e os seus camaradas têm todo o direito e razões de sobra para se sentirem desiludidos com o rumo que o país leva. Têm uma inatacável legitimidade para criticar o Governo enquanto compreenderem que este Governo, goste-se ou não dele, tem também uma inatacável legitimidade para governar.
Por isso, não é útil para o país que a associação adote um tom de intriga putchista, ou que suscite dúvidas sobre a qualidade da democracia. Vasco Lourenço pode entender que o povo escolhe mal, mas dizer que os eleitos não representam o povo é um ultraje. Quem nunca representou o povo português foi Vasco Lourenço, que nunca foi a votos, o MFA, que perdeu a aposta na abstenção, e Otelo, que foi derrotado nas urnas. Como estes senhores devem saber, até porque a senha escolhida para a revolução o explica, o povo é quem mais ordena. A isso chama-se democracia.
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