O PS que se alia à esquerda radical é um PS que desistiu de ser um partido reformista. E que prefere extremistas a moderado. É um partido irresponsável que pode deitar a perder sacrifícios de anos.
Confesso a minha ingenuidade. Na noite das eleições, ouvidas as declarações dos líderes, acreditei que, nos dias seguintes, o PS e a coligação se envolvessem em negociações que desejei profundas e produtivas. Não por isso corresponder aos nossos hábitos políticos – em Portugal só por quatro vezes houve partidos que se entenderam para encontrarem soluções maioritárias quando estas não saíram das urnas (em 1978 o PS e o CDS, em 1983 o PS e o PSD, e em 2002 e 2011, o PSD e o CDS) –, mas por isso ser necessário e urgente. Como tinha sido necessário e urgente nas outras situações anteriores em que partidos se tinham coligado (as vindas do FMI em 1978 e 1983, o “país de tanga” e à beira do “pântano” em 2002, a chegada da troika em 2011).
No meu ingénuo raciocínio, os líderes do PSD, do CDS e do PS, conscientes da frágil situação em que ainda nos encontramos, sabedores de que não chegou ainda o tempo das estradas floridas, conhecedores das regras europeias, haveriam de encontrar um ponto qualquer que aproximasse duas plataformas políticas que, lidas com atenção, apresentavam sobretudo ritmos diferentes de saída da austeridade, mas nenhuma acabava, de um dia para o outro, com a famosa austeridade. Mas fui ainda mais ingénuo: quis crer que, com o envolvimento e a ajuda do Partido Socialista algumas das reformas que não foram feitas na actual legislatura poderiam ser realizadas pelo Parlamento saído das eleições de 4 de Outubro.
Sabe-se o que se passou depois daquela noite e não vou voltar aos temas que têm sido discutidos e rediscutidos – a legitimidade política de uma aliança das esquerdas que surpreenderia a cidadania; a possibilidade de uma acordo razoável com partidos radicais, acordos cuja estabilidade estaria sempre a desafiar as leis da gravidade; as motivações de um líder socialista que, manifestamente, andou a azedar as conversas com a coligação e num enlevo com o Bloco e o PCP. Tudo isso já foi pisado e repisado.
O meu ponto hoje é outro, e é simples: que partido é hoje, e que partido quer ser no futuro, o PS. Porque a luta que se trava por estes dias não é apenas pela cadeira de primeiro-ministro, é também pela alma do PS, pelo seu futuro papel na democracia portuguesa.
Os tacticistas que adoram fazer cenários estão muito preocupados com o resultado imediato do jogo em que António Costa se meteu. Sabem que, mais tarde ou mais cedo, alguém terá de suportar o ónus do que correr mal, e só se preocupam o cálculo egoísta de garantirem que esse ónus não cai sobre o PS. Também não é por aí que vou – essa é mais a especialidade dos seguidores da escola do Prof. Marcelo.
O que me interessa é, se interpretei bem a entrevista que deu à RTP e o que tem escrito no Público, o mesmo que preocupa Francisco Assis. Primeiro, a questão de saber se o PS continua a ser um partido reformista, empenhado em adaptar o Estado Social às novas realidades de um mundo globalizado. Depois, se as grandes clivagens políticas de hoje são as determinadas pelas velhas referências da esquerda e da direita, ou se, pelo contrário, há hoje outras clivagens politicamente mais importantes.
Comecemos pela questão de o PS continuar a desempenhar o papel de um partido reformista, um partido moderado que, no centro-esquerda, procura concretizar aquilo que já foi definido como uma “agenda progressista” mas que não ignore que a economia de mercado continua a ser a melhor forma de produzir riqueza e que a globalização, implicando desafios, não só é vantajosa como tem permitido que milhares de milhões de seres humanos saíssem da pobreza em que viviam há apenas duas décadas.
Num país europeu, e num país como Portugal em particular, essa “agenda progressista” tem como principal desafio a promoção de reformas que ajudem a tornar o Estado Social sustentável e a economia mais competitiva. Não são, não têm de ser, as mesmas reformas, como o mesmo enfoque e prioridades, das que o centro-direita defende. Mas serão sempre reforma que, como se viu nos países que as levaram parcialmente por diante – alguns países nórdicos, a Alemanha, o Reino Unido, até a Espanha e a Itália, se bem que em menor grau – implicam compromissos que não se podem fazer à esquerda do PS. Mas podem e devem ser feitas com o centro-direita e no quadro da concertação social. Foi sempre assim que aconteceu, a começar pelas reformas da Constituição que, apesar da feroz oposição das outras esquerdas, permitiram que fôssemos uma democracia sem tutela militar (1982) e uma economia de mercado aberta (1988).
Essas reformas nunca puderam ser feitas à esquerda, e aquilo que ainda hoje, quarta-feira, ouvimos de Catarina Martins sobre as “vitórias” do Bloco nas negociações com o PS permite-nos perceber que continuam a não poder ser feitas. Pior: aquilo que ouvimos a líder do Bloco anunciar é que o PS tinha abdicado de tudo o que era original no seu programa eleitoral, o tal que tinha todas as contas feitas e previa um caminho alternativo, mas razoável, de recuperação da economia. Foi o trabalho dos economistas apenas engodo eleitoral? Estarão hoje esses economistas mais interessados em serem ministros do que em preservarem a sua coerência intelectual? Não sei responder. Só sei que Francisco Assis tinha razão quando, na entrevista à RTP, quando disse que “o país necessita de reformas que só podem ser feitas ao centro”. Mais; quando sublinhou que o PS “pode governar a qualquer preço e de qualquer maneira porque pagamos um preço grande por isso. (…) Corremos o risco de as nossas ideias, as nossas propostas para Portugal ficarem completamente desqualificadas”. Tudo indica que é isso que está a acontecer.
A segunda questão, a de saber por onde passam hoje as principais clivagens políticas, também não é um detalhe. Mais uma vez não precisamos, e se calhar nem devemos, olhar apenas para o nosso umbigo e para as gritantes discrepâncias entre os programas eleitorais do PS, do PCP e do Bloco. Precisamos é de notar que esses dois partidos actuam aqui como actuam na Europa, e na Europa estão num grupo que se caracteriza pela convergência objectiva com a extrema-direita, algo que Assis sublinhava – como a experiência de quem é eurodeputado – num recente artigo. E convergem porquê? Por terem um discurso dominado pelo “antiliberalismo, o anti-americanismo, a germanofobia, a incompreensão do fenómeno da globalização, o culto do proteccionismo, a apologia de um soberanismo datado e a contestação a tudo o que represente um incremento do federalismo europeu”.
Surpreendidos? Não deviam estar. O programa económico da Frente Popular de Marine Le Pen tem mais em comum com os programas da nossa esquerda radical do que com o de qualquer outra força política portuguesa. Daí que o mesmo Assis sublinhasse que “é hoje muito claro que assistia inteira razão a Norberto Bobbio quando preconizava que tão ou mais importante que a dicotomia direita-esquerda era a contraposição entre moderados e extremistas em cada um destes campos políticos.”
Ao adoptar um discurso “anti-austeritário” que em nada ou quase nada se distingue do dos partidos à sua esquerda, o PS de António Costa procura criar a ilusão de que as eleições de 4 de Outubro foram entre “manter a austeridade” e “virar a página da austeridade” quando ele próprio apresentava um programa (o tal das “contas feitas”) que também tinha muita austeridade. Mas não foi apenas de acordo com essa falsa linha de clivagem que os eleitores votaram – se tivesse sido, e se soubessem que era essa distinção que depois determinaria as alianças pós-eleitorais é muito duvidoso que tivessem votado como votaram (e até já há sondagens a mostrá-lo).
A acção e o destino da “frente anti-austeritária” pode por isso representar um desastre para o país ainda maior do que o abandono da matriz reformista pelo PS de Costa. Pode levar a que um dia, se chegar a primeiro-ministro, se for fazendo as vontades a uma esquerda a que dá sinais de submissão, a sentar-se em frente a Angela Merkel na mesma lamentável situação em que Tsipras se sentou antes de capitular. E isso só não sucede amanhã porque o actual Governo conseguiu libertar o país da troika e deixa dinheiro nos cofres, medidas prudentes que mereceram a chacota do líder do PS.
A minha ingenuidade, a minha enorme ingenuidade foi pensar que o PS era o PS de sempre, e não um rebanho de criaturas submissas perante a deriva do seu chefe, tão sequiosas como ele de sobreviverem e voltarem a ocupar, sem pudor, o Estado. A minha ingenuidade, a minha enorme ingenuidade foi acreditar que um mínimo sentido de Estado faria com que o PS procurasse trazer a coligação atè às suas posições, permitindo que o país continuasse num caminho de recuperação já iniciado mas ainda frágil, não um PS que deixasse cair algumas das bandeiras centrais do seu programa eleitoral para que os votos do grupo da Catarina lhe permitissem ter a ambição de chegar ao poder.
O PS condicionado pela frente de esquerda não é um PS que possa fazer as reformas que sabe necessárias, é pior do que isso: é um PS que vai tratar de destruir algumas das poucas reformas já realizadas. A minha ingenuidade foi pensar que, depois da estridência do discurso eleitoral, viria o realismo de quem tem de viver na Europa do Euro, com as regras do Euro, num mundo globalizado e num país que, pelas divídas que tem (pública, privada e externa) não depende só de si nem da sua vontade.
Mas foi esta alegre irresponsabilidade que nos saiu pela frente. Pobres de nós. E pobre povo.
PS. Oiço e nem quero acreditar: Carlos César foi à SIC dizer que Costa só mostrará o acordo com o PCP e o Bloco – se é que há ou haverá acordo – depois de indigitado pelo Presidente. Mas será que julga que somos todos palhaços? Será que o PS ainda não chegou ao poder e já capitulou à forma opaca, mentirosa e autoritária de fazer política que caracterizou o estalinismo? Quer carta-branca e mãos livres para fazer o que entender? Então ao menos corte o cabelo à moda de Kim Jong-un, pois seria mais coerente.
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