Esqueçam por um minuto as circunstâncias actuais e as simpatias ideológicas: com a possível excepção dos tarados que se expõem a velhinhas, haverá alguém provido de menos amor-próprio do que um deputado que abdica da liberdade em prol da respectiva direcção partidária? Um representante dos eleitores que deixa outros decidirem por ele, e decidirem em sentido contrário às suas convicções (?), não só não representa ninguém como não merece fazê-lo. Antes de constatar que a "frente popular" é uma ameaça à democracia, convém apurar se preencher o proverbial "hemiciclo" com pulgas amestradas tem alguma coisa de democrático. Das muitas maiorias que se conseguem inventariar na AR, a mais preocupante é a maioria de funcionariozinhos resignados à "dis-ciplina de voto", óbvio eufemismo para o sistema de subserviência em vigor.
Não vale a pena falar da extrema-esquerda: ser deputado do Bloco ou do PCP sempre foi uma confissão de renúncia mental, o que até condiz com a veneração do "colectivo" a que o marxismo obriga e o esmagamento do indivíduo que o fundamentalismo exige. Por definição, um parlamentar comunista possui tanta independência quanto os centro-campistas dos matraquilhos. E vive bem com isso, coitado. Não é por acaso que o adjectivo "irreverente" costuma andar associado a essa gente: é por sarcasmo.
Mas talvez valha a pena falar do PS. À semelhança dos partidos à sua direita, o PS não exibe um historial riquíssimo em matéria de autonomia e debate internos. Porém, exibe um currículo suficientemente plural para que os acontecimentos do último mês se aproximem da aberração.
A aberração começou com o silêncio que se seguiu à estratégia do Dr. Costa para escapar à derrota eleitoral e às consequências de um currículo sem préstimo. Fora três ou quatro excêntricos, para cúmulo reformados da AR, os socialistas assistiram mudos às primeiras manobras do exercício. E mudos permaneceram quando diversas relíquias museológicas do partido explicaram a Cavaco Silva que nomear Pedro Passos Coelho seria uma "perda de tempo". E mudos continuaram quando, nomeado Passos Coelho, toda a gente o declarou a prazo. E mudos provavelmente ficarão quando, na semana que vem, forem chamados a derrubar o governo e a atirar o PS para o apertado abraço de estalinistas e "bolivaristas". E a despejar Portugal no Terceiro Mundo.
Eis a artimanha dos que inventaram a coligação "antiausteridade": ao mesmo tempo que se exigia respeito pelo Parlamento, reduzia-se, pelos vistos com propriedade, o Parlamento "antiausteritário" a um bando de nulidades mortinhas por obedecer às alucinações do chefe - desde que as alucinações lhes assegurassem emprego imediato e ainda que desgraçassem o país.
De início, não faltou quem contemplasse isto com ingenuidade e esperasse um levantamento de socialistas indignados. Depressa a ingenuidade se transformou em wishful thinking e, por fim, em completo pasmo. Quarenta anos depois do debate com Cunhal, que justamente enxotou os bolcheviques do convívio civilizado, um sufocado sucessor de Mário Soares convocou-os a voltar. E os invertebrados serviçais da criatura preparam-se para ser decisivos cúmplices de um crime, que embora não previsto na lei é facilmente previsível nas nossas castigadas vidas. Resta Cavaco, se restar.
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