O antigo Presidente da República defende uma reforma do sistema eleitoral e da Administração Pública, que está “colonizada” pelos partidos do arco de poder
Foi um diagnóstico muito pessimista, mas “realista”, aquele que Ramalho Eanes deixou numa conferência organizada pela SEDES - Associação para o Desenvolvimento Económico, em Lisboa. Para o antigo Presidente da República, Portugal enfrenta uma “crise” que atravessa as principais dimensões sociais do país, da política à Administração, passando pelas Forças Armadas e pela própria sociedade civil. Não uma crise de regime, como defendeu há semanas Marcelo Rebelo de Sousa, mas sobretudo de “uma crise de representação” que coloca em causa a própria democracia.
“Quando a moral pública se fragiliza” abre-se “porta à demagogia, corrupção e justicialismo”, argumentou Eanes. “E é isso que ameaça acontecer, pela culpa das instituições políticas, mas também da sociedade civil. Não há uma crise da democracia, nem do regime, mas há uma crise de representação política. Muitos dos eleitores não se sentem representados pelos partidos políticos”. Para Eanes, há uma "epidemia de corrupção que grassa pela sociedade" e para a qual também concorre uma "cultura de complacência" generalizada.
Sem nunca relativizar o papel que a sociedade civil deve ter na regeneração das instituições, o general não deixou de apontar o dedo aos partidos e aos eleitos. “Os partidos políticos são consabidamente imprescindíveis. No entanto, enquanto organização, pouco mudaram”, notou, falando num “encastelamento” que tem sido “perversamente mantido” por um sistema eleitoral fechado, em que um “eleito é mais um delegado dos partidos políticos do que um representante do eleitor”.
É esse encastelamento que tolda a forma como se organizam a Administração Pública, e as empresas públicas, que tem sido, acusou o antigo Presidente, “colonizada partidariamente”, afastando os “mais competentes” e “desmobilizando os melhores quadros”. “Os critérios do saber, da competência e do mérito foram, por vezes, [substituídos] pela fidelidade partidária”.
Depois da perda progressiva da autonomia económica e financeira, em grande parte pela forma como foi conduzido o processo de integração europeia, Portugal, apontou Eanes, conheceu anos de “delapidação de recursos públicos” sem que pareça existir, ainda hoje, um verdadeiro “desígnio nacional”. “A situação pode não ser drasticamente crítica, mas merece enorme preocupação. Mas uma possível nova crise internacional pode transformar-se numa grande ameaça. É certo que o país muito mudou e para melhor. Mas muito mais terá de melhorar para que o Estado se mostre capaz de cumprir as suas funções”, argumentou.
Numa intervenção de mais de uma hora, Eanes insistiu na necessidade de o país se unir em torno de um “projeto mobilizador” e de investimento em áreas estratégicas como a “Justiça – que atravessa uma preocupante e pública crise - Saúde, a Administração Pública, a Educação, os Transportes, a Segurança Social” e, claro, as Forças Armadas, a quem o antigo Presidente dedicou largos minutos. “É reconhecido que bem não vão as Forças Armadas. Preocupante é também a atenção dedicada pelo poder político. Desde 1974, assiste-se à perda significativa da autonomia das Forças Armadas. Impunha-se que o poder político definisse claramente uma missão para as Forças Armadas.”
Já perto do final da conferência, e quando desafiado por um membro da plateia a juntar-se e a liderar um projeto político, Eanes afastou esse cenário. “[Entendo que o país] deve ser reformado com a prata da casa, com os partidos existentes e outros que eventualmente venham merecer a adesão dos portugueses. Não é na minha idade que posso assumir essa responsabilidade. Os homens da minha idade devem ajudar as formações partidárias existentes a assumirem as suas responsabilidades”, rematou. (via)
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