Por vezes, no meio de uma leitura descontraída dos jornais de Domingo, surge uma notícia ou um texto que nos apanha desprevenidos e nos faz mergulhar em descrições e acontecimentos que só sabemos serem possíveis porque, como referiu Pierre de Montaigne, já lá vão uns séculos, “nada do que é humano me é estranho”... Veja-se esta história, longamente narrada na revista El Pais Semanal, de 31 de Dezembro.
Enriqueta Marín
O local é Barcelona e o tempo é 1912. A cidade vive assustada, perante uma vaga de desaparecimento de crianças que se arrasta há já alguns meses. Em 10 de Fevereiro desaparecera Teresita Guitart, de apenas cinco anitos. Pelos vistos, acompanhada pela mãe, a miúda não entrou em casa e optou por dar uma volta pelo passeio. A noite já caía e ela acabou por ser levada por uma mulher vestida de negro.
Apesar da divulgação pública da foto da menina, o certo é que nunca mais ninguém a viu até ao dia 27 desse mês, quando uma mulher alertou as autoridades porque lhe pareceu ver Teresita numa janela próxima, pertencente a uma vizinha. Com a desculpa de que queria esclarecer uma denúncia sobre galinhas, a Polícia entrou por lá dentro, apesar dos protestos da proprietária. Encontram uma miúda, aparentando cinco anos, e perguntaram-lhe o nome. “Felicidad”, respondeu. O polícia não se ficou: “Não será antes Teresita?”. A miúda aquiesceu, mas foi dizendo que lhe tinham dito que o seu nome havia passado a ser “Felicidad”.
Levada à esquadra, a dona da casa foi identificada como Enriqueta Martí Ripollés, de 43 anos, já exibindo uma condenação por ‘corrupção de menores’, três anos antes. Pelos vistos, explorava então um prostíbulo, onde crianças dos cinco aos dezasseis anos eram sexualmente exploradas. Ela foi, efectivamente, processada, mas o processo desapareceu. Pelos vistos, havia gente importante envolvida...
Apesar do seu porte cuidado e de uma aparência inofensiva, Enriqueta singrara na vida prostituindo-se, mesmo com o conhecimento do marido, um homem fraco e um pintor medíocre.
Mas, agora, outra questão se levantava: é que juntamente com Teresita, aparecera uma segunda menina, Angelita, que ninguém sabia quem era. E, por outro lado, a vizinha insistia que havia também um rapazito. Quanto à primeira hipótese, Enriqueta argumentou que era sua filha e quanto ao rapaz, Pepito, tinha ido embora da cidade.
Mas os testemunhos do marido, em como ela nunca havia estado grávida – o que os médicos confirmaram – e, principalmente, das miúdas, não suportaram a sua tese. Com efeito, Felicidad contou os maus tratos e Angelina descreveu como vira Pepito ser morto, com uma faca, por Enriqueta.
Barcelona estava prestes a desabar.
Impressionados pelos relatos das miúdas, os habitantes de Barcelona criaram contas de poupança para as miúdas e a polícia resolveu investigar a residência mais a fundo. E, na cave da humilde casa, encontram uma sala faustosa, com mobiliário requintado e onde estavam expostos vestidos sumptuosos de seda, para adultos e crianças. E acharam ossos, muitos ossos: costelas, clavículas, rótulas, que vieram a ser confirmadas como pertencendo a crianças, com o pormenor de todos terem sido expostas ao fogo. Descobriram ainda o escalpe ruivo de uma menina de três anos, frascos com sangue coagulado e outros com gordura humana. Numa prateleira, estavam livros antigos, em pergaminho, com fórmulas e dizeres estranhos...Enriqueta não se ficou e explicou que, sim, era curandeira e fazia poções e unguentos, mas nunca tinha feito mal a ninguém...
A polícia resolveu, então, revolver as suas anteriores moradas, nos últimos dez anos. Como seria de prever, os achados macabros continuaram: mãos de crianças, ossos, mais cabeleiras de meninas, crânios e os esqueletos de três miúdos, com três, seis e oito anos de idade.
O resultado do inquérito foi claro: Enriqueta usava as crianças numa dupla função. Por um lado proporcionava prazer sexual a clientes; e, por outro, usava-os como matéria-prima para os seus preparados. A explicação para esta utilização talvez resida no facto de, naquele tempo, se acreditar que a cura para a tuberculose residia na ingestão de sangue humano e na aplicação de cataplasmas de gordura humana no corpo.
Pela cidade falava-se da existência de uma lista de ‘clientes’ que incluía políticos, médicos, advogados, comerciantes, gente das artes e outras, conhecidas por serem “amantes da caridade”.... A ser verdade, não sobrou um exemplar para a história.
No entanto, “A Vampira de Carrer Ponent”, como ficou conhecida, não viveria muito tempo, linchada pelas colegas de cárcere, muito embora se dissesse que já estava morta quando tal aconteceu, envenenada a mando dos tais poderosos que queriam silêncio a qualquer custo...
Enriqueta foi ainda falada durante uns tempos, até que, em Abril, o naufrágio do Titanic haveria de monopolizar os cabeçalhos dos jornais...
“A crença numa fonte sobrenatural para o mal não é necessária; o Homem é capaz de qualquer maldade”, Joseph Conrad
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