Dois pesos e duas medidas
Recentemente voltou a falar-se da questão que opõe a Câmara Municipal do Porto ao Governo, a propósito da privatização do aeroporto Francisco Sá Carneiro. Reclama a Câmara, do Estado, o ressarcimento dos investimentos feitos quando da construção do "aeródromo da cidade do Porto", nos mesmos termos em que o fez à Câmara de Lisboa.
Nas redes sociais dispararam os mais controversos comentários a este respeito por não se entender ser possível ter a Câmara do Porto construído um aeroporto em terrenos dos municípios da Maia e de Matosinhos. E, na verdade, à luz das competências e poderes municipais dos nossos dias, não é fácil compreender.
Mas os tempos eram outros.
Por mero acaso, veio agora parar-me à mão a revista municipal "Porto de Encontro", publicada em Abril de 1999, onde se deixavam algumas notas sobre a construção do campo de aviação de Pedras Rubras, em resultado do que então se conseguiu apurar.
Vale a pena recuar ao longínquo ano de 1938 para se ter a exacta noção do sucedido.
Em Janeiro desse ano, o dinâmico eng.o Duarte Pacheco, director do Instituto Superior Técnico e anterior ministro das Obras Públicas e Comunicações, é nomeado presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Em maio seguinte, volta a assumir o ministério de que já tinha sido titular, acumulando com a presidência da Câmara. Sem perder tempo, como era seu timbre, faz publicar em Julho o decreto-lei 28 882 com vista a ser construído o aeroporto da capital e onde se consignam as responsabilidades que cabem ao Governo e à Câmara na concretização do projecto.
Logo no seu artigo primeiro escreve-se que "O aeroporto da capital, a construir em terrenos adquiridos ou a adquirir pelo município de Lisboa... destina-se ao serviço da aviação civil e da aviação militar".
Nos artigos seguintes, define-se com precisão quais as tarefas que cabem às duas partes, o montante das comparticipações e determina-se que a elaboração dos projectos e a execução das obras cabe à Câmara de Lisboa. Assinam o presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, e mais sete ministros, entre os quais Duarte Pacheco.
No Porto, à época, era presidente da Câmara o professor catedrático e procurador à Câmara Corporativa António Augusto Esteves Mendes Correia. A cidade fervilhava de gente e de actividade. O senso de 1940 atribuía à cidade 286 000 habitantes e o comércio, a indústria e o sector financeiro mostravam uma enorme pujança. O Porto era o grande centro empresarial e universitário, enquanto os concelhos limítrofes eram fundamentalmente agrícolas. A cidade tinha poder económico e força política. Não é, por isso, de estranhar que a 19 de Julho desse mesmo ano de 1940, o Governo tenha aprovado o decreto-lei 30 602 em que refere: "Propondo-se o Governo e a Câmara Municipal do Porto fazer construir o aeródromo da cidade do Porto... Artigo primeiro: É tornado extensivo às obras do aeródromo... o que se acha estabelecido no decreto-lei 28 882 para o aeroporto da capital, em tudo o que não seja alterado pelos artigos seguintes". Assinam Salazar, Duarte Pacheco e os mesmos ministros. Em Abril de 1945, efectua-se a primeira aterragem oficial - pousa em Pedras Rubras um avião Dakota, pilotado pelo então tenente-coronel Humberto Delgado.
O mesmo regime tinha sido, assim, aplicado às duas grandes cidades. As câmaras compraram os terrenos ou expropriaram, realizaram os projectos, executaram as obras, recepcionaram as empreitadas. O Governo fiscalizou e comparticipou - 50% em Lisboa e 66% no Porto. Mesmo um governo ditatorial não teve a ousadia de discriminar os dois municípios, salvo numa maior comparticipação à cidade do Porto.
Pois bem, o actual Governo não pensa da mesma forma. Pelos terrenos necessários à construção do aeroporto, a Câmara de Lisboa recebeu deste Governo 286 milhões de euros. A Câmara do Porto, usando o mesmo critério e tendo em conta a maior comparticipação recebida, reivindica 67,8 milhões que o Governo nega e cuja decisão vai deixar arrastar pelos tribunais.
Até pode haver argumentos jurídicos que, no limite, sustentem a posição do Governo. Mas a questão deixou de ser jurídica para passar a ser política, a partir do momento em que já pagou a Lisboa. Nesta avaliação, o Governo não passa - perante uma mesma situação, tem dois pesos e duas medidas.
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