A conquista da segunda cidade do país por parte de um candidato independente sem qualquer passado político empenhado só pode ser vista como um feito extraordinário. No Porto, Rui Moreira vai ser o próximo presidente da Câmara e essa façanha não pode ser vista em exclusivo nem pelo seu desempenho nem pelo desempenho dos seus adversários: para se perceber o que aconteceu, tem de se perceber o que é o Porto.
Em qualquer outra grande cidade do país, seria difícil um independente fazer pontes em quantidade e dimensão suficiente para captar as diferenças sociológicas, económicas, culturais e afectivas. Rui Moreira ganhou porque foi capaz de criar um denominador comum facilmente apropriável por uma cidade que muitas vezes funciona como um bairro, onde as fronteiras esquerda/direita se diluíram, onde o comunitarismo foi explorado pelo slogan de campanha “o nosso partido é o Porto”, onde a invocação das “contas à moda do Porto” é facilmente percebida por todos, onde o protesto contra o centralismo encontra eco numa população que se sente injustiçada e esquecida pelo Estado central.
Rui Moreira ganhou porque soube em primeiro lugar construir um discurso de pertença, porque foi capaz de articular uma mensagem que recentrou o Porto numa velha tradição política de cidade que se baseia na autonomia e na oposição ao simbolismo do Terreiro do Paço. Ganhou também por ter o apoio de Rui Rio e do CDS/PP, por causa do sentimento contra o partido do Governo ou contra todos os partidos. Mas dificilmente estes factores seriam suficientes para catapultar um empresário que se destacou como presidente da velha e vetusta Associação Comercial do Porto ou por se ter dado a conhecer ao grande público num programa da televisão onde representava o FC Porto. Moreira ganhou porque teve o mérito de aparecer ao eleitorado da cidade como alguém que é capaz de representar os seus interesses sem a mediação dos partidos. Ganhou porque soube reclamar o bom da herança de Rui Rio, as contas e as obras nos bairros sociais, ao mesmo tempo que recusava com firmeza os estilhaços de uma política cultural anacrónica e os resquícios de uma visão de cidade provinciana.
Se estas eleições tivessem ocorrido há um ano ou dois, talvez nem essa precisão de mensagem e compreensão dos dados do jogo político do Porto fossem capazes de parar o que então se definia como o rolo compressor de Luís Filipe Menezes. Até há pouco tempo, o Porto anémico olhava para a outra margem do rio e via um dinamismo que transformou Gaia de um subúrbio numa cidade moderna (embora ainda muito incompleta e descontínua). Até há pouco tempo, era Menezes quem tinha a ousadia de descer às ruas da cidade nas festas de S. João para receber o afecto popular. Não foi, porém, apenas por causa da sua colagem ao Governo que Menezes sofreu uma pesada derrota: foi porque não foi capaz de perceber que a sua mensagem fontista, que a sua visão da política baseada em promessas, estava agora comprometida pela desconfiança de uma cidadania que paga com o desemprego e com o empobrecimento o obreirismo das últimas décadas. A sua campanha feita de bailes nutridos com porco no espeto podia ter eficácia nos bairros pobres: mas, como se viu, estava condenada a ser recusada pelo eleitorado urbano que é largamente maioritário na cidade.
Manuel Pizarro fez bem o trabalho de casa e definiu um programa consistente, que revelava conhecimento dos problemas com receitas sensatas para o debelar. Tinha nestas eleições a oportunidade de ouro de fazer regressar o PS ao poder no Porto, bastando-lhe aproveitar a divisão nas hostes do PSD entre a facção Rio e a facção Menezes. Falhou porque não percebeu a tempo que Moreira era um candidato forte. Numa primeira instância, tentou até dividir com ele a herança de Rui Rio, irritando algumas hostes da esquerda que olham para o actual presidente como um contabilista anacrónico envolvido num discurso peronista de pendor caritativo. Quando deu conta, viu-se no papel do menino da escola com dedo no ar para ser ouvido no meio de uma discussão entre dois adultos. Pela sua mensagem e pela sua seriedade política, teria dado um bom presidente.
Moreira, um independente, conquistou a segunda cidade do país e, aconteça o que acontecer, o seu nome já entrou na história política da era democrática. Uma coisa é um independente sem passado partidário ganhar uma vila do interior onde todos se conhecem; outra é ser capaz de captar o apoio maioritário de uma urbe como o Porto. Como em muitos outros momentos da história do país, o Porto voltou a ser um laboratório político.
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