O Circo Costa lá saberá o que faz mas há mais espectadores que começam a temer que a tenda, mal montada, caia – e caia sobre eles. Só o azar do homem-canhão, o ministro da Cultura, passou despercebido
Desde que o Circo Costa chegou à cidade, a vida tem sido diferente. Cada vez mais diferente. Já nos bastava a angústia de ver o funâmbulo António Costa, num impecável fato justo e reluzente, ornado de lantejoulas douradas, equilibrar-se dificilmente numa corda esticada entre Bruxelas e o Bloco e o PC, e agora é a vez de assistirmos, de novo, ao número da CGTP, um dos momentos sempre fortes do Circo Costa. Claro que, como nas aparições anteriores (transportes, etc.), o domador Arménio Carlos afronta dentro da jaula a sociedade em geral, mas desta vez, a benefício de uma maior emoção, meteu lá dentro também a Igreja, e mandou Mário Nogueira, por interposto ministro, pô-la na ordem. O Circo Costa lá saberá o que faz, mas cada vez mais os espectadores começam a temer que a tenda, mal montada, caia – e caia sobre eles. O azar que aconteceu ao homem-canhão, o ministro da Cultura, passou praticamente desapercebido, até porque só caiu a um metro do canhão, e praticamente ninguém tinha reparado que ele estava ali. Agora a coisa arrisca-se a ser diferente.
Enquanto não chega mais uma rábula do palhaço pobre e do palhaço rico, a cargo do Bloco (a do “cartão da cidadania” foi impagável), não é inútil perder algum tempo a olhar para o programa das actividades, isto é, a moção de António Costa ao XXI Congresso Nacional do Partido Socialista. Para o bem e para o mal (mais para o mal do que para o bem, infelizmente), ficamos a saber que o circo se arrisca a nos oferecer mais números animados. Até porque a gerência (o PS) exorbita, nas suas próprias palavras, sem dúvida certeiras, de um “dinamismo vibrante”.
E como ele é necessário e bem-vindo! Quanto mais não seja, porque urge combater um inimigo impiedoso: a “ideologia neoliberal”, o “pensamento único”, que dita a “estratégia de empobrecimento da direita” e que se ousou cobrir com as vestes da “inevitabilidade”. Desta vez o Capuchino Vermelho não cai no truque do Lobo Mau disfarçado de avozinha. A estratégia de combate é subtil e aposta na diversidade. A direita é una e maciça, tal como a sua ideologia. A esquerda, pelo contrário, é “plural”. Devidamente articulada, através de um “intenso trabalho conjunto de negociação permanente”, pode, portanto, atacar a direita de vários lados e sob múltiplos aspectos. A diversidade, ainda por cima, garante a “solidez” e a “consistência” necessária para “cumprir a alternativa”. Desenganem-se, portanto, os “tradicionais adeptos do pessimismo militante”, perversamente imbuídos de uma “visão catastrofista”, que pensam que a incoerência (em relação à Europa, etc.) é mau caminho para a realização de objectivos sólidos. De acordo com a teoria do conhecimento do PS, ela é justamente uma virtude.
Em Portugal, portanto, o “vibrante dinamismo” vai de vento em popa. E em relação à Europa e ao mundo? Bom, aí o Mal não foi ainda completamente derrotado e, portanto, a doutrina é mais reservada. Reina a “ditadura do «risco moral»” e o “império da austeridade”. Só “ditadura” e “império” já assustam. E a coisa ainda é mais triste quando, por comparação, pensamos nos bons tempos dos “visionários como Jacques Delors”. (Aqui, o PS sugere-nos prestimosamente, en passant, uma excelente definição de “visionário”: aquele que não consegue prever as consequências possíveis das suas acções e, verosimilmente, não se importa muito com isso.) Há que reconhecer que, falando de Bruxelas, o PS procede a uma mutação metafísica da sua posição relativamente a Portugal. Por cá, a pluralidade, a diversidade, e, consequentemente, uma certa forma de inacabamento, constituíam, como se viu, uma virtude. Nada disso na Europa: uma “obra inacabada” (e a moção aponta várias) é, por definição, “disfuncional”. Exige-se, portanto, o máximo acabamento, a máxima unidade. Passa-se do paradigma do Múltiplo para o paradigma do Uno. Que, é verdade, quando é referida a relação de Portugal com Bruxelas, reintroduz em si alguma diversidade: “a construção europeia é um espaço de negociação permanente”. A complexidade da dialéctica não nos deve desencorajar. Já Platão, lidando com estas questões do uno e do múltiplo, oferece análises árduas. É natural que as do PS manifestem uma abstracção ainda superior.
Quanto ao poder local, talvez não valha a pena resumir a posição da moção. Até porque ela contém passagens misteriosas como: “As novas áreas metropolitanas exercerão competências a descentralizar das estruturas desconcentradas do Estado” (sic). Talvez por desconcentração, não me consegui, por assim dizer, “centralizar” no significado da passagem. Em todo o caso, o “novo tempo político” encarregar-se-á sem dúvida de nos explicar isto, entre outras muitas coisas.
E o futuro? Sem surpresa, será um tempo de luta contra o “forte desvio neoliberal do centro-direita conservador”, causador da “derrocada da economia mundial” e da “política de austeridade contra o Estado Social”. O que implíca uma auto-crítica. O PS, no passado, foi atacado por um vírus: “fomos também contaminados, em diversos momentos históricos, pelo vírus da fé excessiva na autorregulação dos mercados, não sendo capazes de resistir às tendências de financeirização do capitalismo mundial, nem de impor uma regulação suficiente do processo de globalização”.
Por mim, ignoro se o PS foi efectivamente contaminado por tal vírus, e, se o foi, quem foram os fracos, incapazes e descuidados primeiros-ministros socialistas responsáveis pelo facto (a moção de António Costa não o diz). Duvido até que o vírus tenha existido. Em contrapartida, há certamente um outro vírus que recentemente o contaminou: um vírus ainda mais multifacetado que a “esquerda plural”. Alguns efeitos deste vírus:
Provoca a alucinação de uma misteriosa causalidade ideológica que teria trazido a miséria dos portugueses, bem como o delírio que consiste em se acreditar na não menos misteriosa solidez de arranjos por essência periclitantes.
Cria desejos ansiosos de um perfeito e acabado mundo europeu e de uma união sem falhas, funcionalmente impecável, e contraditoriamente, apetites de uma livre diversidade na perfeita unidade.
Deteriora gravemente as capacidades sintácticas e semânticas do espírito.
Suscita a ilusão de vírus que estariam na origem de fés excessivas nos mercados.
Os efeitos deste vírus plural nos artistas de circo já se começam a fazer sentir aqui e ali, e só podem piorar. A pirâmide humana que apoia coxamente os cálculos do ministro Mário Centeno, pode ruir de forma estrondosa quando alguém, de forma imprevista, sem atender a qualquer “intenso trabalho conjunto de negociação permanente”, quiser mudar, amarinhando lampeirinho, o seu lugar em baixo por um lugar no topo. Resta só saber se, quando o circo fechar as portas, quando a tenda for abaixo, a cidade visitada pelo Circo Costa ainda existirá.
PS. A palavra “Cultura” (com maiúscula, é verdade) aparece uma única vez nas 35 páginas da moção de António Costa. Alguém certamente deverá protestar.
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