Através do tweetter, o Pedro Bragança @pfbraganca desenvolveu uma thread (série de tweets) sobre a chamada «descentralização», analisando dois casos emblemáticos: o Iapmei e a AICEP.
Série de 31 tweets muito esclarecedores.
Aqui se publica, com a devida autorização do autor a quem agradecemos.
Título do post da minha responsabilidade.
1. O menu teórico da descentralização consiste na transferência dos centros de decisão e do capital, de modo a distribuir os benefícios gerados pela presença do Estado no território e a mitigar os efeitos adversos da concentração em Lisboa.
2. É uma espécie de regionalização domesticada, já que consiste numa concessão de poderes e distribuição geográfica das organizações, mas não admite a criação de um nível administrativo intermédio, autónomo e legitimado pelo voto popular.
3. De um ponto de vista estritamente teórico, é difícil contestar um programa político tão aparentemente bem intencionado. Mas proponho avançarmos um pouco mais, de modo a conhecermos em proximidade o modelo de “descentralização” concebido por Lisboa.
4. Apresento o caso da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) e do Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e à Inovação (IAPMEI), duas organizações (EPE e IP) “descentralizadas”.
5. AICEP e IAPMEI têm as suas sedes descentralizadas no Norte. A opção parece fazer todo o sentido: são instituições de apoio às empresas e à internacionalização e é no Norte que se encontra a maior densidade de PME e, particularmente, de PME com potencial exportador.
6. As duas fontes de financiamento destes organismos são, essencialmente: (1) o Orçamento do Estado, em comissões de gestão definidas em Portaria pelo Conselho de Ministros e (2) fundos comunitários.
7. Dentro dos fundos comunitários, temos duas proveniências principais: (1) Compete – Programa Operacional Factores de Competitividade, que financia projetos geridos pela AICEP e pelo IAPMEI, e (2) Programas Operacionais Regionais (POR), que financiam custos operacionais.
8. AICEP e IAPMEI são organismos técnicos intermédios que gerem a execução de programas e têm custos de funcionamento relacionados com a análise de candidaturas e com o apoio a empresas. São estes custos de “Assistência Técnica” (nomenclatura comunitária) que os POR financiam.
9. Dos programas Operacionais Regionais (POR), o Norte é o que o mais contribui, como é possível verificar na tabela. Entre 2015 e 2017, por exemplo, o Norte 2020 aprovou 853 884,86 € de “Assistência Técnica” para a AICEP, enquanto o Lisboa 2020 aprovou 374 214,49 €.
10. Já em relação ao IAPMEI, o Norte 2020 contribuiu com 3 193 265,06 €, mais do que qualquer outra região. Lisboa 2020 contribuiu com 918 205,61 €.
11. Parece aceitável. Não só dadas as diferenças entre programas, mas, também, considerando que as sedes se encontram no Porto, logo, os benefícios económicos da sua presença (e.g. criação de emprego) centrar-se-ão também no Porto. Certo? Veremos.
12. Segundo a Direção-geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP), a AICEP tem 464 trabalhadores e o IAPMEI tem 340. Sendo uma EPE, a AICEP está sujeita a regras de transparência e abertura de informação ao público, o que nos permite conhecê-la melhor por dentro.
13. Os 464 trabalhadores da AICEP estão geograficamente distribuídos assim, segundo o balanço social. Ou seja, este organismo “descentralizado”, pago maioritariamente por fundos comunitários destinados à região mais pobre do país, acaba a gerar mais emprego em… Lisboa.
14. É ainda preciso ter em conta que os 233 postos de trabalho gerados em Lisboa são tendencialmente mais qualificados e mais bem pagos do que os 55 do Porto.
15. E na soma global de custos com pessoal, prestadores de serviços e fornecimento de serviços externos, como é que se distribui geograficamente a presença da AICEP? Qual é a região que mais beneficia com este organismo “descentralizado”?
16. Tendo em conta o relatório contabilístico da empresa, em 2017, a sede nacional, no Porto, soma 7 086 299,85 €, enquanto a “delegação regional”, em Lisboa, soma 30 020 143 €.
17. E onde é que este organismo “descentralizado” vai às compras? Consultando a base de dados de contratos públicos, as conclusões são evidentes: a AICEP prefere Lisboa, onde contrata 60 vezes mais do que no Porto.
18. E em relação ao IAPMEI, o outro organismo “descentralizado”, serão as coisas muito diferentes? Não são. No mesmo período que a delegação regional de Lisboa contratou 20.240.785€, a sede, no Porto, contratou 1.298.749€, 16 vezes menos.
19. A análise aos centros de decisão da AICEP (CA, SG, direções e departamentos) aponta no mesmo sentido. Seria de supor que a sede servisse para concentrar funções, mas, neste caso, o Porto não tem mais do que uma secretaria de atendimento ao público. Já na “delegação”…
20. Conselho de Administração, Secretaria-geral e todas as direções da AICEP estão sediadas na “delegação regional” de Lisboa. No Porto, onde oficialmente está a sede, nada. É uma espécie de descentralização da descentralização. Inception!
21. É, por isso, fácil de compreender as exigências logísticas da delegação regional de Lisboa, para a qual um edifício inteiro na Av. 5 de Outubro já não era suficiente.
22. Mudou-se recentemente para a Torre B Entrecampos 28, onde ocupa mais de metade da área. São instalações amplas e luxuosas, que incluem o último piso.
23. Esta torre foi recentemente comercializada pela Savills e pela Worx e está anunciada com um custo mensal/m2 entre €16 e €18. Assim, os mais de 3000m2 ocupados pela “delegação regional” de Lisboa da AICEP podem custar entre 576 e 624 mil euros / ano.
24. No Porto, a “sede” da AICEP apresenta-se mais modesta. Um par de apartamentos no decrépito Parque Itália, mesmo ali entre o Beautiful & Happy Day Spa, o MindGrow Hipnose Clínica e Life Coaching e a Taróloga Bruna – Orientação Espiritual.
25. O IAPMEI, dizia eu, sendo IP, tem dados mais fechados. Mas, ainda assim, há indicadores paradigmáticos. Dos 62 anúncios colocados na Bolsa de Emprego Público, 61 dizem respeito à “delegação regional” de Lisboa e apenas 1 à “sede”, no Porto.
26. Estes são apenas dois exemplos. Poderíamos estar a falar da Portugal Ventures, da PME Investimentos, ou de tantas outras instituições públicas supostamente descentralizadas, cuja sede é pouco mais do que um apartado.
27. As sedes no Porto são fachadas com objetivos claros: primeiro, captar fundos comunitários destinados à região mais pobre de Portugal; segundo, desviá-los para Lisboa. Digamos que são uma espécie de offshores de fundos comunitários.
28. Tal como há empresas que mudam a sede para beneficiarem de apoios, tal como há aldrabões que montam esquemas para beneficiarem do apoio às vítimas dos incêndios, tal como há deputados que dão moradas fictícias para ganharem mais subsídios…
29. Neste caso, tudo ganha contornos particularmente nojentos. Os fundos do Norte2020 são apoios destinados à região mais pobre do país, com um PIB per capita de 64% da média da UE, e estão a ser desviados para a única região portuguesa mais rica do que a média da UE.
30. É, no fundo, uma chico-espertice tuga: engana-se a UE, como aconteceu no passado, com o famoso mecanismo spill-over, que valeu a condenação do Estado Português no Tribunal de Justiça da União Europeia…
31. …cria-se a ilusão de que há um processo efectivo de descentralização em marcha; manipula-se as estatísticas; alimenta-se o discurso político. Mais do que uma ficção, é uma fraude com a assinatura da Sagrada Igreja do Centralismo.
2 comentários:
Viva Kosta!
Estou a contactá-lo para o informar que hoje citei o nome do seu blogue a propósito de um artigo publicado esta manhã no JN de Pedro Baptista (que aconselho a ler), em falei do Movimento Pró Partido do Norte, onde calaboramos.
Um abraço
Viva Kosta!
Estou a contactá-lo para o informar que hoje citei o nome do seu blogue a propósito de um artigo publicado esta manhã no JN de Pedro Baptista (que aconselho a ler), em falei do Movimento Pró Partido do Norte, onde calaboramos.
Um abraço
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