A reconversão do antigo Matadouro de Campanhã está comprometida porque o Tribunal de Contas (TdC) recusou o visto prévio ao contrato para a obra. O anúncio foi feito esta tarde por Rui Moreira, que acusa o TdC de ir contra a vontade sufragada pelos portuenses "a seu bel-prazer", causando "sério prejuízo ao interesse público". Veja, na íntegra, a intervenção do presidente da Câmara do Porto em conferência de imprensa realizada nos Paços do Concelho.
A recusa do Tribunal de Contas, "seca e telegráfica", chegou às 12,30 horas de sexta-feira à empresa municipal GO Porto, "sem mais dizer ou dar a conhecer os fundamentos da sua decisão", informou hoje o presidente da Câmara do Porto à comunicação social.
Era este o último dia do prazo que o Tribunal de Contas tinha para se pronunciar sobre o contrato, que foi enviado pelo Município para a necessária fiscalização prévia em Agosto do ano passado e também sobre este facto Rui Moreira apresentou críticas. Para o autarca, a intenção do Tribunal de Contas foi "esgotar o tempo" e, na sua opinião, a atitude assume contornos políticos.
Desde Agosto, o Tribunal de Contas já tinha solicitado três pedidos de esclarecimentos - em 27 de Agosto de 2018, em 25 de Outubro de 2018 e em 3 de Janeiro de 2019 - sendo que de cada vez que estes pedidos são formulados, os prazos suspendem-se, explicitou o edil.
"Foram esclarecidas todas as questões colocadas e a Mota Engil acatou a recomendação do Tribunal e constituiu uma sociedade comercial anónima expressamente para o efeito, tendo como único objecto as actividades descritas no contrato, prestando uma caução de cerca de 3,6 milhões de euros", detalhou.
Já o acórdão com a fundamentação da recusa apenas chegou esta segunda-feira, por volta da hora de almoço, à GO Porto. No total, são 176 páginas que têm agora de ser analisadas pelos serviços jurídicos municipais, para apresentação de recurso, garantiu Rui Moreira. Ainda assim, valendo-se das questões que ao longo dos últimos meses, foram apresentadas pelo Tribunal de Contas, o presidente da Câmara do Porto acusou este organismo de "extravasar as suas competências" e de pôr em causa, com esta e outras decisões, "o normal funcionamento do Estado de Direito" e causar "um sério prejuízo ao interesse público" (a título de exemplo, mencionou os obstáculos criados à transferência das ações da SRU para o Município, que só foram ultrapassados através de um decreto-lei aprovado em Conselho de Ministros).
O projecto, que granjeou o interesse do mercado e onde a Mota Engil pretende investir cerca de 40 milhões de euros, após ter vencido concurso público internacional em Maio de 2018, mereceu "o amplo consenso de todas as forças políticas da cidade e 'apaixonou' o Presidente da República, que veio expressamente ao Porto para manifestá-lo, dizendo que cada dia que passava sem que se iniciasse era um dia perdido", tendo inclusive ressalvado que esta obra era de importância nacional, semelhante à Expo 98, recordou Rui Moreira.
Trata-se, continuou o autarca, de um "game changer", ou seja, uma obra capaz de mudar a cidade a partir de Campanhã, "onde decidimos apostar porque não pode continuar como está". Contudo, lamentou que, com este chumbo, a vontade sufragada pelos portuenses esteja a ser "travada pela vontade de quem não conhece e em quem não votou".
Perante este cenário, "toda a ajuda possível é bem-vinda", venha ela do Presidente da República, Governo e Parlamento, finalizou o presidente da Câmara do Porto, recordando que bastaria mudar as regras sobre os vistos prévios que os municípios, sendo também Estado, estão obrigados a requerer junto do Tribunal de Contas. Uma questão que aliás já esteve em cima da mesa de negociações da Cimeira de Sintra, organizada pelas Áreas Metropolitanas, mas que entretanto foi abandonada pelo processo de descentralização que se seguiu, lembrou Rui Moreira.
Discurso do presidente da Câmara do Porto, na íntegra:
A reconversão do Matadouro Municipal foi unanimemente reconhecida como um projecto essencial para a regeneração urbana da zona oriental da cidade do Porto, transformando um edifício, desativado e abandonado há cerca de 20 anos, num equipamento âncora na reabilitação urbana, com base nos eixos da coesão social, da economia e da cultura.
Com base, portanto, num programa político sufragado, legítimo e que mereceu a renovada confiança dos eleitores.
Mantendo a sua memória histórica e natureza arquitetónica, o projecto recupera integralmente o edifício, cria espaços empresariais diversificados e polivalentes - espaços comerciais e de lazer de apoio local; espaços destinados à ação social e à ligação com a comunidade local; e espaços de cariz cultural e artístico, destinados à exposição, à produção e ao depósito de arte.
O projecto é um motor para uma zona da cidade que sucessivamente o poder desvalorizou ou não foi capaz de promover. Mas é um projecto de e para todo o Porto, toda uma região. É um projecto nacional e inédito, pela capacidade de mudar um território que é no Porto, mas que é Portugal.
Deve, por isso, ocupar-nos a todos. Creio que foi isso que o Senhor Presidente da República quis dizer ao compará-lo, na capacidade de mudar, à Expo 98.
O concurso internacional - com um júri presidido pelo Dr. Elizio Summavielle, que foi Secretário de Estado da Cultura e Diretor-Geral da Cultura e é uma das mais conceituadas personalidades no âmbito da valorização do património - decorreu sem incidentes e demonstrou a viabilidade do conceito, interessando o mercado e criando, em seu torno, um invulgar consenso.
A empresa Mota Engil - uma empresa portuguesa, do Porto, com assinalável currículo - foi a vencedora desse concurso público internacional e pretende investir cerca de 40 milhões de euros, com um projecto do arquitecto japonês Kengo Kuma, que trabalhou num conceito com um gabinete de arquitectos português com origens na extraordinária escola de arquitectura do Porto.
Como já disse, o projecto mereceu o amplo consenso de todas as forças políticas da cidade e "apaixonou" o Presidente da República, que veio expressamente ao Porto para manifestá-lo, dizendo que cada dia que passava sem que se iniciasse era um dia perdido.
Após o envio do contrato, em agosto de 2018, para fiscalização prévia do Tribunal de Contas, sucederam-se três pedidos de esclarecimentos - em 27 de agosto de 2018, em 25 de outubro de 2018 e em 3 de janeiro de 2019.
Tudo parecia decorrer normalmente, dentro daquilo que são os prazos do Tribunal de Contas, que se suspendem sempre que o Tribunal de Contas pede esclarecimentos.
Foram esclarecidas todas as questões colocadas e a Mota Engil acatou a recomendação do Tribunal e constituiu uma sociedade comercial anónima expressamente para o efeito, tendo como único objeto as atividades descritas no contrato, prestando caução.
Mas, no dia em que chegaram ao Tribunal de Contas as demonstrações de que Câmara, Assembleia Municipal e Mota Engil cumpriram já tudo o que era requerido, repetiram-se as perguntas já respondidas e com esclarecimentos detalhados já prestados.
Nada ficou por responder. Nada ficou por responder, e isto não obstante muitas das questões extravasarem claramente o âmbito da fiscalização prévia.
E no último dia de prazo, que por três vezes se suspendeu, o Tribunal de Contas recusou o visto, através de um fax enviado à empresa Municipal GO Porto, sem mais dizer ou dar a conhecer os fundamentos da sua decisão de recusa.
De nada serviu relembrar, nas várias respostas, a aprovação de instrumentos urbanísticos que reforçaram a centralidade do Matadouro no projeto de regeneração urbana daquele território; que outro modelo já havia sido testado sem sucesso ou interesse do mercado; o amplo consenso político; a vontade de uma cidade em torno de um imóvel que continua simplesmente ao abandono.
Todas as explicações foram dadas, todos os elementos foram fornecidos, a tudo o Tribunal de Contas foi indiferente, persistindo em decidir pelo Município, pela vontade sufragada em eleições, pela vontade expressa pelo consenso político. Persistindo em decidir pelo Porto e, neste caso, até pelo País, não seja a palavra do Senhor Presidente da República, também, essa expressão.
O Tribunal, nas suas perguntas, foi sempre questionando, ora o modelo, ora a opção política.
Recusando agora o visto, no último dia, causando assim o máximo dano porque como se entende, adia qualquer solução ulterior. Mata este projeto e mata qualquer outro que, neste mandato, a vontade popular sufragada, quisesse implementar.
A Câmara Municipal do Porto respeita - sempre respeitou - as instituições e os tribunais. É no respeito pelas instituições que aqui estou.
Neste caso, e não conhecendo as razões do Tribunal, uma vez que o acórdão só foi formalmente recebido hoje já depois da convocatória desta conferência de imprensa, ousamos afirmar que esta decisão é uma intromissão inadmissível que põe em causa a soberania dos municípios. É o normal funcionamento das instituições, pois, que aqui está em causa e já não sequer um exacerbar de competências.
Só nos podíamos, é certo, e até este momento, basear nas perguntas que nos foram sendo feitas. Mas elas são a prova inequívoca de que a separação efetiva de poderes não é acolhida pelo Tribunal de Contas. Porque este Tribunal entende que pode extravasar as suas competências e tomar as suas decisões de acordo com uma perspetiva política, diria ideológica, que não encontra fundamento legal ou constitucional. Porque a nossa Constituição estabelece claramente o princípio da separação de poderes e é à luz desse princípio fundamental que deve ser entendida a função do Tribunal de Contas e a sua lei orgânica.
Ou seja, não pode o Tribunal de Contas assumir-se como uma troika interna, com poderes arbitrários para permitir ou não permitir, a seu bel prazer, que os executivos municipais decidam de acordo com o que entendem ser as suas opções políticas.
Um tribunal que contabiliza os seus vistos prévios, como quem, no lugar da troika, se obriga a chumbar a vontade dos portuenses. Digo, dos portugueses.
Independentemente do que vier a suceder, há sucessivas decisões do Tribunal de Contas - e não apenas relativamente ao município do Porto naturalmente - que introduzem um factor arbitrário de imponderabilidade, nos prazos e nas suas decisões, que põe em causa o normal funcionamento do estado de direito e que causam um sério prejuízo ao interesse público.
Porque essa imponderabilidade tem um impacto directo na credibilidade dos concursos e contratos públicos.
Pergunto, quantas vezes mais uma Mota Engil estará disponível para se ocupar com um concurso, apresentar um projecto contratado ao arquitecto que assina o Estádio Olímpico de Tóquio, criar uma empresa própria, prestar caução e arriscar - sim, arriscar tudo, porque todo o risco corria por conta do privado neste modelo - para, meses após ganhar, lhe dizerem que, afinal, alguém, algures, diz não.
Naturalmente, o Município do Porto irá ler e analisar o acórdão, recebido postumamente o que é, só por si, lamentável, questionável e desrespeitoso para com o município, para com os portuenses...para com os portugueses. Será aceitável que o município tome conhecimento do sentido de uma decisão sem conhecer concomitantemente a sua fundamentação?
O município, em qualquer caso, não deixará de apresentar recurso, desde logo porque há responsabilidades contratuais junto do adjudicatário que foram incrementadas pelas exigências feitas pelo Tribunal de Contas e que resultaram numa mera futilidade, mas também, e principalmente, porque o município entende que o projecto e o processo do Matadouro são essenciais e virtuosos, como de resto foi afirmado em Campanhã pelo Senhor Presidente da República.
Este não é mais um projecto de um presidente, de uma maioria, de um executivo e nem sequer de um tempo.
Esta não é uma reabilitação como o Bolhão, ou o Rosa Mota, ou o Batalha, que muito bem os portuenses nos exigem.
Este não é um projecto para resolver um problema de mobilidade, como o Terminal Intermodal e que o tempo, mais lento ou mais veloz vai decidindo.
O Matadouro Municipal é o "game changer" da cidade, como foi a Expo 98 em Lisboa ou o Metro no Porto, num país que precisa de "game changers", que precisa de sonhos concretizados e que precisa de deixar de cismar sobre as suas fraquezas.
Por isso não nos precipitámos. Houve um período de concepção, um período de ante-projecto, um período de estudo e ponderação da sua viabilidade conceptual. E houve decisão política, consensualizada e sufragada.
A viabilidade do projecto teve na resposta dada pelo mercado ao concurso público a sua prova.
Mas não se contenta o Tribunal de Contas que em Portugal se possam concretizar sonhos e desafios, sem o seu consentimento prévio e tutelar, pejado de considerandos ideológicos e ao arrepio da autonomia local.
E vejamos agora até onde poderá ir o efeito perverso desta visão tutelar.
Imaginemos que a Câmara, em lugar de entregar o Matadouro por 30 anos a um privado, que se obriga a nele investir 40 milhões de euros, a cumprir o programa definido pela Câmara e a ceder à Câmara a 8 euros o metro quadrado espaços fundamentais para a cultura e coesão social de que impreterivelmente Campanhã e a cidade precisam, tinha feito diferente.
Imaginemos que a Câmara vendia a preço de saldo o espaço e nele deixava que o privado fizesse o que entendesse, ficando para sempre na sua posse. E imaginemos que a Câmara alugaria, depois, os mesmos espaços ao dobro do valor que pagaria no modelo que colocamos a concurso.
O Tribunal de Contas nem sequer teria que se pronunciar em nenhum dos actos que descrevi.
O que hoje é público seria privado, o que regressaria à posse da Câmara dentro de 30 anos ficaria nas mãos de terceiros, o que ao Município custaria 8 passaria a custar 16 e não saberíamos - nem seria nada connosco - o que o privado lá faria e muito menos quanto investiria.
Que interesse público está então a ser defendido com a recusa deste visto?
Aquilo que, com todo o respeito pelo Tribunal de Contas, o deve preocupar não são as questões que se prendem com a oportunidade das escolhas, mas antes o cumprimento da estrita legalidade da despesa. Que neste caso é claramente definida, concreta e balizada pelo concurso e pelo contrato, justificada pelas necessidades, e indubitavelmente menor do que qualquer alternativa.
Nas suas decisões mais recentes, adoptadas em sede de fiscalização prévia, o Tribunal de Contas tem levantado incompreensíveis obstáculos à actuação do Município do Porto, utilizando o instituto da fiscalização prévia não para assegurar a legalidade das decisões democraticamente sufragadas adoptadas pelo Município mas para controlar a bondade e oportunidade das decisões das autarquias locais, concretamente, do Município do Porto.
A importância fundamental do princípio da imparcialidade em toda a actividade da Administração Pública e do rigor e exigência a que está hoje sujeito o sector empresarial municipal - bem como a importância do rigor e disciplina a que devem estar submetidas as contas públicas, nomeadamente as contas públicas municipais - merecem integral acolhimento no Município do Porto, que procura constantemente garantir o estrito cumprimento desses objectivos, pode mesmo afirmar-se, sem modéstia, que a preocupação que o Município do Porto tem demonstrado na garantia de um escrupuloso controlo das contas públicas é por todos conhecido e o mesmo se diga relativamente às empresas municipais existentes. Estamos em integral sintonia com estas preocupações mas nenhuma delas legitima a decisão de recusa de visto, pois o Porto tem demonstrado e dado provas do seu mérito, capacidade e meios para garantir o rigor das suas boas contas e das suas opções estratégicas em prol da cidade e dos seus habitantes.
Durante estes anos, o projecto do Matadouro foi amplamente discutido, envolvendo os órgãos autárquicos, a junta de freguesia, a sociedade civil, abrindo o espaço em tosco para que todos pudessem compreender a sua valia. E teve até o teste internacional, ao ser apresentado mundialmente na Trienal de Milão.
O projecto do Matadouro tem mundo, é em Portugal, mas é do Porto, onde não há apenas uma legítima expectativa, mas também uma enorme crença.
Basta ver o que sucedeu com a recente visita do Senhor Presidente da República ao local: sem convocatória, a população aderiu e compareceu.
Ou seja, é um projecto que envolveu a cidade e que esta agora reclama democrática e soberanamente.
A cidade, mas também o país, não podem continuar indiferentes aos problemas da autonomia, da soberania, da democracia e da cidadania. E todos eles se confinam neste tema.
Deixo, por isso e por fim, uma palavra ao Senhor Presidente da República, ao Parlamento e ao Governo:
Não é possível governar uma cidade cumprindo a palavra dada ao cidadão eleitor, se se continuar a permitir que órgãos não eleitos extravasem as suas funções e violem o princípio da separação de poderes.
Não é possível governar uma cidade quando sucessivas entidades têm o direito de veto sobre decisões soberanas e legais do município.
O cidadão comum, esse que esteve connosco e com o Senhor Presidente naquela tarde no matadouro, mas também o que decide ainda votar cumprindo um dever cívico fundamental, elegendo políticos mas também políticas, já não entende.
E é assim que se assassina a democracia. Quando deixa de fazer sentido, para o cidadão, votar. Porque a sua vontade, afinal, não vale e é travada pela vontade de quem não conhece e em quem não votou.
Não, não me peçam para ser cúmplice, pelo silêncio ou inacção, dessa encenação.
0 comentários:
Enviar um comentário