Porto Seguro
Texto de Filinto Melo
Era madrugada quando acordei e chovia que Deus a dava. Não sei quantos anos teria, os meus pais pareciam preocupados mas, com uma rapidez que hoje seria impensável, voltei a adormecer.
O pátio que estava em frente das casas térreas do Bairro Ignez era inseguro mas não parecia. Quando lá jogávamos à bola, quando o Toninho montou a primeira rede de Badmington e saltávamos para o smash, quando o meu irmão acelerava com a sua moto de brinquedo: Quando passeávamos e brincávamos pelo pátio do Bairro aquilo era o local mais seguro do mundo. As velhas tomavam conta de todas as crianças, um muro separava-nos dos 10 metros de altura do campo de vinhedos que o senhorio insistia em ter lá em baixo.
Mas um dia, naquela madrugada, a água da chuva foi tanta, as correntes que desciam desde a rua da Restauração eram tão fortes que o pátio, o muro, os portões, as soleiras das portas das casas térreas, as portas das casas de banho (que ficavam higienicamente fora de casa), a macieira da minha mãe, as galinhas da vizinha, o jardim florido dos mudos que viviam ao nosso lado… tudo desapareceu. Tudo menos as casas, o histórico bairro manteve-se; e as pessoas, não houve vítimas.
O mau tempo faz sempre das suas, ainda nas últimas semanas percebemos como destruiu outros pátios, deitou abaixo outras árvores, atapetou muitos jardins.
Na década seguinte, a minha família e outras, melhorando os seus meios de subsistência, acabou por se mudar para os subúrbios, para casas mais seguras e com um conforto que o Bairro Ignez – malgrado a sua localização e as suas vistas – não oferecia, e ele foi-se esvaziando. A recuperação económica do país parecia estar a ditar a desertificação do histórico espaço.
Aquela zona ia sendo esquecida, com o fecho das fábricas e oficinas da rua da Restauração, do comércio e dos serviços de Massarelos e devido à proximidade da então “problemática” Miragaia (anos 1980). A rua de Sobre-o-Douro – topónimo que como conta Cunha e Freitas na “Toponímia Portuense” surge no registo paroquial de Massarelos pela primeira vez em 1743 – não tinha outro atrativo a não ser o preço das rendas. Por isso, só foram ficando os velhos, inseguros mas audazes, eles que tinham já passado por tanto.
Alguns deles teriam até conhecido ainda os descendentes do “capitalista Ignês Martins Guimarães” que comprou o bairro que ocupava uma parte do antigo Convento de Monchique ao Conde de Burnay. O senhor Ignês transforma, pela mão de Inácio Pereira de Sá, “a fábrica num bairro para os operários que trabalhavam nas diversas indústrias que estavam localizadas nesta zona da cidade”, como conta o caminhante César Santos Silva.
Entretanto, o Bairro Ignez foi redescoberto. A recuperação do espaço operada por uma equipa dirigida pelo arquiteto Fernando Távora ditou o repovoamento, inicialmente por jovens e arquitetos que se instalaram nas casas que iam vagando; mais tarde foi residência de alunos de Erasmus. E o que vejo do Bairro Ignez hoje, à distância, são as entradas na pesquisa do Google: “Bairro Ignez Apartments”, “Oporto City flats” e o hostel, entre outras. A minha residência, o “Casa 3″, até aparece como referência no site Tripadvisor brasileiro.
Hoje, no velho bairro operário, ainda vivem alguns velhotes (a Joaninha, por exemplo, minha ama), profissionais liberais, alguns estudantes de Erasmus e turistas que procuram os “hostel flats” com “uma vista única sobre o Douro”.
O meu velho bairro, onde os velhos vizinhos ainda se encontraram para, literalmente, “ver os aviões” (quando houve as Red Bull Air Races) ou para aproveitar a folia a rodos nas vésperas de S. João, é hoje, com os diferentes moradores e hóspedes das suas 23 casas, um retrato do cosmopolitismo do Porto. Do novo Porto. Esperemos que um Porto seguro.
Filinto Melo escreve segundo o novo acordo ortográfico.
1 comentários:
Viva, tinha perdido este texto desde o fecho do Porto24. Obrigado por me ter ajudado a recuperá-lo. Abraço
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