Faz este mês 200 anos que o Congresso de Viena ordenou a Espanha que devolvesse Olivença a Portugal. Espanha não fez caso da resolução, o que ainda hoje atormenta muito patriota português.
Uma delegação do Grupo dos Amigos de Olivença apresenta-se na Comissão dos Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas da Assembleia da República para entregar uma petição que insta, mais uma vez, o Governo português a exigir veementemente a Espanha a devolução de Olivença, tal como previsto no Artigo 107 do Acto Final do Congresso de Viena, aprovado pelos embaixadores plenipotenciários das nações europeias em 1815 e ratificado por Espanha dois anos depois.
A entrega da petição, cuja data foi escolhida para coincidir com o bicentenário da assinatura do Artigo 107, é perturbada por um estrondo: uma esquadra chinesa que entrara, sem fazer anunciar-se, no estuário do Tejo, disparou um tiro de intimidação que atingiu a cúpula do Panteão Nacional, onde uma comissão de sábios ultima os detalhes da cerimónia de transladação do corpo do Pantera Negra, a 3 de Julho.
Não há vítimas a registar, mas o alvoroço toma conta de Lisboa e a consternação aumenta quando é divulgado o teor do ultimato transmitido pelo almirante da esquadra chinesa ao Governo português: a fim de proteger os seus numerosos cidadãos em Portugal e os seus interesses económicos, a República Popular da China solicita a cedência por tempo ilimitado dos portos de Sines e Leixões. A poucos minutos do final do prazo de 24 horas estipulado no ultimato, o Governo português satisfaz a pretensão chinesa.
A geopolítica actual torna inverosímil o cenário do ultimato chinês a Portugal, mas a China poderia invocar estar apenas a agir em consonância com antecedentes estabelecidos pelo Ocidente há mais de um século. Ao longo do século XIX, o outrora poderoso Império Chinês foi revelando uma vulnerabilidade crescente e as potências europeias e o Japão aproveitaram-se do facto para obter numerosas concessões comerciais e territoriais.
Após as derrotas nas duas Guerras do Ópio (1839 e 1856), na I Guerra Sino-Japonesa (1894-5), na Rebelião dos Boxers (1899-1901) e em várias escaramuças com britânicos, franceses e norte-americanos, a China era um gigante exangue e à beira do desmembramento e bastava a uma nação estrangeira enviar uma canhoneira para um porto chinês e fazer voz grossa para obter o que queria.
“China: o bolo dos reis e dos imperadores”, cartoon de Henri Meyer, em “Le Petit Journal” de 16 de Janeiro de 1898, mostrando a Grã-Bretanha, a Alemanha, a Rússia, a França e o Japão a retalhar a China
A Macau, durante muito tempo a única presença estrangeira em território chinês (desde 1557), e Hong Kong, cedida aos britânicos em 1841, seguiu-se, na viragem dos séculos XIX-XX, uma vaga de concessões forçadas de portos, fortalezas, caminhos de ferro, minas e direitos de comércio em território chinês a alemães, russos, franceses, japoneses e até a austro-húngaros, italianos e norte-americanos (já não falando da apropriação de Taiwan e da Coreia pelo Japão e da Manchúria pela Rússia).
Tendo a China recuperado, entretanto, a pujança e passando a Europa por dificuldades, podemos dar-nos por felizes se os chineses não guardarem rancor das humilhações sofridas há pouco mais de um século. De qualquer modo, as empresas estatais chinesas têm vindo a apoderar-se de sectores estruturais da economia portuguesa sem necessidade de tiros e, a avaliar pelas palavras do presidente do Governo Regional dos Açores quando confrontado com o abandono das Lajes pelos EUA, também não será necessária a ameaça de uma esquadra chinesa para que Portugal entregue bases militares à China: bastará a perspectiva de alguns patacos e de uns postos de trabalho não-especializado.
Se o ultimato chinês a Portugal é uma ficção improvável, já é plausível que o bicentenário do Congresso de Viena seja pretexto para a entrega de nova petição sobre a magna Questão de Olivença à Assembleia da República. O Congresso de Viena esteve reunido entre Setembro de 1814 e Junho de 1815, mas compreende-se a demora a chegar a uma solução final: estava em causa estabelecer um novo equilíbrio de poder na Europa após três décadas de convulsões incessantes, decorrentes da Revolução Francesa e da megalomania sem freio de Napoleão. Face aos vastos rearranjos geopolíticos que resultaram do Congresso, a devolução de Olivença era apenas uma nota de rodapé, mas para os portugueses era um ponto de honra.
Segundo o Congresso de Viana de 1815, o Alto Alentejo deveria ser assim
Em 1295-96, D. Dinis de Portugal aproveitara-se de lutas internas em Leão e Castela para se imiscuir nos assuntos internos dos vizinhos e apropriar-se de alguns territórios na raia, entre os quais Olivença, aquisições que seriam confirmadas em 1297, através do Tratado de Alcanizes. As alterações ocorridas nos limites territoriais entre 1297 e o presente resumiram-se a ajustes de pormenor nas regiões raianas, a última das quais foi a perda de Olivença para Espanha em 1801, na fugaz Guerra das Laranjas, um conflito com Espanha e França, em que Portugal se viu enredado por recusar quebrar a aliança com Inglaterra, e que serviu de prelúdio às Guerras Peninsulares. Portugal, derrotado nesta guerra com nome digno de zarzuela, viu-se forçado a assinar o Tratado de Badajoz, pelo qual se comprometia a fechar os portos à navegação britânica e confirmava a cedência de Olivença aos espanhóis.
Manuel de Godoy, Duque de Alcudia, o vencedor da Guerra das Laranjas, retratado em 1801 por Francisco Goya. Terá enviado à rainha espanhola umas laranjas colhidas perto de Elvas, como prova do seu triunfo
O Artigo 107 do Acto do Congresso de Viena revertia a cedência, mas Espanha nunca lhe deu cumprimento, pelo que Olivenza (assim passou a chamar-se) se quedou espanhola até hoje, o que faz com que, do ponto de vista estritamente formal, os Amigos de Olivença tenham razão. Esta falta-lhes em quase tudo o mais, mas os irredentistas oliventinos são certeiros quando denunciam o comportamento dúplice de Espanha, que reclama à Grã-Bretanha que lhe devolva Gibraltar enquanto se agarra a Olivença e aos enclaves marroquinos de Melilla e Ceuta (que, recorde-se, foi portuguesa entre 1415 e 1668).
É certo que uma Gibraltar britânica é tão absurda como uma Southampton espanhola, mas os britânicos podem alegar que Gibraltar já passou mais tempo na sua posse (311 anos: foi conquistada em 1704 e formalmente cedida pelo Tratado de Utrecht em 1713) do que como território espanhol (289 anos: entre 1415 e 1704). Mas se fosse a antiguidade a decidir, Gibraltar reverteria para o Califado, já que foi muçulmana durante sete séculos – Djebel el-Tariq, a “montanha de Tariq”, foi o local onde desembarcou em 711 o general omíada Tariq ibn-Ziyad, que liderou a invasão da Península Ibérica.
Diego de Salinas, o último governador espanhol de Gibraltar, num quadro de 2011 de Augusto Ferrer-Dalmau
Pelo facto de ter sido, entre o início do século XIX e o início do século XX, a potência global n.º1, a Grã-Bretanha coleccionou territórios – e conflitos – um pouco por todo o lado: é o caso das ilhas Falkland, que chegaram a motivar uma guerra com a Argentina em 1982. Mesmo desfeiteada, a Argentina continua a reclamar a posse das ilhas – e fá-lo com maior veemência de cada vez que os seus problemas internos se agudizam e o governo precisa de distrair a atenção do povo – e insiste em chamar-lhes Malvinas, o que não abona em favor da sua causa. O nome nada tem de espanhol: vem de Malouines, por na ilha se terem instalado pescadores do porto bretão de Saint-Malo.
Com efeito, embora as ilhas tivessem sido avistadas e visitadas desde o início do século XVI por navegadores espanhóis, portugueses, holandeses, ingleses e franceses, a primeira base permanente foi fundada em 1764 pelo francês Louis de Bougainville. Pouco depois, os franceses cederam a sua posição aos espanhóis e foi entre estes e os ingleses que a posse foi sendo disputada nas décadas seguintes. Quando a Argentina se tornou independente, entrou na liça, mas a sua presença nas ilhas apenas durou entre 1820 e 1833 (e ainda assim com intermitências e apenas mediante guarnições militares), altura em que foi expulsa pelos britânicos. Ironicamente, em 1841, a Argentina propôs à Grã-Bretanha renunciar definitivamente às Malvinas, em troca do perdão da dívida que contraíra com a banca londrina – os britânicos recusaram.
Colonos britânicos nas Falkland, em quadro de 1849, pelo almirante Edward Fanshawe
Independentemente das disputas militares e diplomáticas, as ilhas quase não tiveram população residente até tarde e só a partir de meados do séc. XIX teve início a colonização pelos britânicos, que foi consolidando-se desde então – sendo os habitantes, em esmagadora maioria, de ascendência britânica, as reivindicações argentinas não têm outro fundamento que a (relativa) proximidade geográfica (as Falkland estão a 500 Km da costa da Patagónia). Se a vontade dos habitantes fosse o único critério, o referendo realizado em 2013 seria elucidativo: 99.8% dos votantes escolheram manter-se como súbditos britânicos.
Os referendos realizados em Gibraltar em 1967 e 2002 tiveram desfechos análogos, com mais de 99% de votos na manutenção da soberania britânica. Em Olivenza, onde não há sinais de uma minoria portuguesa oprimida por uma potência ocupante, não é difícil prever qual seria o resultado de um hipotético referendo. Nem todas as situações são idênticas e a posse britânica de Gibraltar (ou a posse espanhola de Ceuta) é mais difícil de justificar do que a posse britânica das Falkland. Mas há que reconhecer que o sonho espanhol de reocupar Gibraltar recebeu em 2013 um rude golpe, com o reconhecimento da selecção nacional de futebol do Rochedo pela UEFA.
Casos há em que a perda de uma parcela de território produz num país sintomas comparáveis aos de um paciente a quem foi amputado um membro mas continua a receber dele sensações fantasma: veja-se o caso da Bolívia, que na Guerra do Pacífico (ou Guerra do Salitre), em 1879-83, perdeu para o Chile a província de Antofagasta, que constituía a sua única ligação ao mar, mas continua a possuir uma Marinha e a celebrar o Dia do Mar.
Territórios perdidos pela Bolívia e pelo Peru em favor do Chile, na Guerra do Pacífico (ou Guerra do Salitre)
Para deixar claro que a perda do “Litoral” não é assunto esquecido, o presidente boliviano Evo Morales decretou em 2011 que a “Marcha Naval” (ou “Hino ao Litoral”), cuja letra assegura que “Antofagasta, tierra hermosa,/ Tocopilla, Mejillones,/ junto al mar,/ Con Cobija y Calama, otra vez a Bolivia volverán”, deveria ser cantada obrigatoriamente em todas as cerimónias oficiais.
A Bolívia tem em curso um processo no Tribunal Internacional de Justiça de Haia para obter, senão a reversão do território perdido, pelo menos um acesso ao mar – as primeiras sessões de alegações estão marcadas para o próximo mês de Maio. Esta é uma das raras obsessões territoriais que consegue despertar simpatias: perder uma antiga e sonolenta praça-forte ou um sorumbático rochedo são dores menores quando comparadas com o trauma de perder o mar.
Se o século XIX assistiu a rearranjos fronteiriços na América do Sul, foi na Ásia e Oceânia e, sobretudo, em África, que as disputas territoriais foram mais acesas. Após o rearranjo geopolítico acordado no Congresso de Viena, a relativa estabilidade das fronteiras entre os países europeus teve o reverso numa corrida sôfrega destes a território ultramarinos, com momentos nada dignificantes.
Nem a secular aliança entre a Grã-Bretanha e Portugal impediu que os dois países se enfrentassem na questão do Mapa Cor-de-Rosa, que exprimia a ambição de Portugal à soberania sobre o vasto território entre Angola e Moçambique (correspondente ao que é hoje o Zimbabwe e parte substancial da Zâmbia e Malawi). Ainda hoje, o Mapa Cor-de-Rosa e o ultimato britânico de 1890 despertam um ressentimento anti-britânico em muitos portugueses, que não se interrogam sobre que bem teria advindo, para Portugal ou para os africanos, da posse dessa área, se Angola e Moçambique estavam então, e estariam durante muito tempo mais, mergulhados num profundo torpor – um caso flagrante de “mais olhos do que barriga”.
O ainda hoje mítico Mapa Cor-de-Rosa, que teve o seu fim em 1890
De qualquer modo, todo este apetite infrene por território redundaria em nada após a II Guerra Mundial, quando as potências coloniais concluíram que não conseguiriam contrariar o desejo de auto-determinação dos povos ou que a glória de possuir colónias não compensava o que se gastava com elas.
Portugal foi das últimas a perceber que era vão nadar contra a corrente da história e continua a ter dificuldade em confrontar a pequenez actual com a vastidão passada. Ficou célebre o mapa “Portugal não é um país pequeno”, de 1934, amplamente difundido pelo regime em Portugal e no estrangeiro, que sobrepõe ao mapa da Europa as possessões coloniais portuguesas e cuja legenda confronta a área destas (2.096.639 km²) com as das áreas somadas de Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália e Alemanha (2.186.071 km²).
“Portugal não é pequeno”, o famoso mapa de 1934
O misto de bazófia e insegurança que esta peça de propaganda salazarista transmite ressurgiria, intacto, no mapa “Portugal é mar” que, 80 anos depois, o Governo português afixaria em 44.000 salas de aulas e que confronta os 92.000 km² de terra firme portuguesa com os 1.600.000 km² da Zona Económica Exclusiva portuguesa e os 4.000.000 km² da proposta de área alargada de jurisdição marítima portuguesa submetida à Comissão de Limites da Plataforma Continental da ONU.
Como no Mapa Cor-de-Rosa, pode perguntar-se: o que fez até agora Portugal com o que já tem no prato para justificar a cobiça por tão generosas doses extra? Há quem pareça ter aprendido pouco com a história: tantos séculos passaram e continua a não ser aconselhável levar Portugal a jantar num restaurante tipo buffet
“Portugal é mar”, o novo mapa de 2014
O facto de termos um único vizinho, de as nossas fronteiras com ele pouco terem mudado em 700 anos e de o país ser, desde há muito, homogéneo em termos étnicos, linguísticos, religiosos e culturais – uma situação quase inédita na história universal – inculcou-nos uma noção de nação simplista e estática.
Basta olhar para a história dos Balcãs ou da Europa central e oriental para perceber quão limitada é essa concepção: a Lituânia, hoje um país com 65.300 km² (2/3 da área de Portugal) era no século XIV uma potência – o Grão-Ducado da Lituânia – que se estendia do Báltico até quase ao Mar Negro. A confederação do Grão Ducado da Lituânia com o Reino da Polónia, em 1569, deu origem a uma monarquia dual, a União Polaco-Lituana, que abarcou, na sua máxima extensão, 1.200.000 km² (englobando o que é hoje a Lituânia, a Letónia e a Bielorrússia e partes substanciais da Polónia, Ucrânia e Estónia) e 11 milhões de habitantes (aproximadamente o mesmo que as populações somadas de Portugal e Espanha na mesma época). Mas acabaria integrada no Império Russo, recuperaria a independência entre 1918 e 1940, mas já em formato XS, seria anexada pela URSS e só em 1990 voltaria a ser independente. Na Europa central e oriental, estados, nações e fronteiras foram, até 1945-6, conceitos nebulosos e em permanente mutação.
A Lituânia em 1387
Em The reconstruction of nations: Poland, Ukraine, Lithuania, Belarus, 1569-1999, Timothy Snyder fornece exemplos elucidativos: a cidade de Kolomyia, hoje na Ucrânia, fez parte do Reino da Polónia até 1772, do Império Austro-Húngaro até 1918 (com breve ocupação russa em 1914-15), da Polónia entre 1918 e 1939, da URSS entre 1939 e 1941, do III Reich entre 1941 e 1944 e novamente da URSS entre 1941 e 1995 – e Snyder até deixa de fora que Kolomyia fez parte do reino moldavo em 1498-1531 e trocou várias vezes de mãos entre turcos e polacos ao longo do séc. XVII.
Independentemente desta incessante alteração na soberania formal, Kolomyia foi, antes de mais, uma cidade judaica, em termos étnicos, linguísticos, religiosos e culturais – até à implementação da Solução Final, em 1941-42. Vilnius é hoje capital da Lituânia, mas até há algumas décadas poucos eram os seus habitantes que falavam lituano: “antes da II Guerra Mundial, a língua falada em 1/3 das suas casas era o iídiche; a língua falada nas ruas, igrejas e escolas era o polaco, nas zonas rurais em torno da cidade, o bielorrusso”.
Kolomyia e Vilnius não são casos excepcionais: as cidades e países da Europa de Leste foram um caleidoscópio de etnias, línguas, religiões e culturas. O exacerbar dos nacionalismos no final do século XIX e os rearranjos de fronteiras decorrentes da I Guerra Mundial e da fragmentação dos impérios russo, austro-húngaro e alemão foram retirando variedade a esse mosaico multicultural e multiétnico, mas só com o terramoto da II Guerra Mundial e as suas réplicas o sonho maligno do estado-nação, homogéneo em termos de etnia, língua, religião e cultura, se impôs.
A “arrumação” foi feita à custa de rios de sangue e inenarráveis sofrimentos: como se não bastassem os combates, deportações, torturas, execuções e mortes pela fome e outras privações que devastaram este desafortunado território na década de 30 e durante a II Guerra (14 milhões de mortos entre 1932 e 1945, contabiliza Timothy Snyder, no arrepiante Terra Sangrenta: A Europa entre Hitler e Stalin), o fim do conflito mundial marcou o arranque de novas limpezas étnicas (algumas iniciadas ainda antes de as tropas alemãs terem sido expulsas), de que dá conta Keith Lowe em O Continente Selvagem: “a obsessão fascista com a pureza racial […] teve um enorme impacto nas atitudes europeias. Tornou as pessoas conscientes da questão da raça como nunca antes. Obrigou as pessoas a escolher um lado, quer quisessem quer não. E, em comunidades que tinham vivido lado a lado, de forma mais ou menos pacífica, transformou a raça num problema […] que precisava de ser resolvido.”
Expulsão de polacos do oeste da Polónia para dar lugar a colonos alemães, em 1939
Assim, no rescaldo da II Guerra Mundial, 780.000 polacos foram expulsos da Ucrânia soviética, 230.000 da Bielorrússia, 162.000 da Lituânia; a Polónia retribuiu com a expulsão de 480.000 ucranianos. Os eslovacos expulsaram a minoria húngara, os ucranianos expulsaram a minoria romena, romenos e húngaros expulsaram, respectivamente, as minorias húngara e romena. Mais a sul, nos Balcãs, a Jugoslávia expulsou os italianos, a Bulgária os turcos, a Grécia os albaneses.
Os alemães, em tempos disseminados por todo o Leste – havia comunidades alemãs em lugares tão remotos como o Volga, onde se tinham instalado no século XVIII a convite do czar – foram os que mais sofreram: 7 milhões foram expulsos da Polónia, 3 milhões da Checoslováquia, 1.8 milhões da Hungria, Roménia e outros países. E nem a perseguição desumana de que tinham sido vítimas fez os judeus serem tratados com mais compaixão: o anti-semitismo recrudesceu nos países eslavos, forçando a fuga de 300.000 dos judeus que tinham escapado aos nazis.
Desnecessário será dizer que a maioria desta expulsões se fez em condições penosas e foi acompanhada de extrema violência: Snyder estima que os “ajustes de contas” entre a Polónia e a Ucrânia após o fim da guerra, para lá de deslocarem 1.4 milhões de pessoas, causaram 100.000 mortos.
Tudo isto será desconcertante para os habitantes do país que se orgulha de ter as mais antigas fronteiras da Europa. Por outro lado, as dores dos irredentistas oliventinos deverão parecer risíveis a um polaco, que, em 1945, viu mais de 1/3 do território nacional amputado em favor da Ucrânia soviética e, em jeito de “compensação” recebeu a Prússia Oriental e uma boa fatia da Alemanha.
Após a desagregação do bloco soviético, poderia temer-se que as nações do leste da Europa voltassem a engalfinhar-se numa luta mortal, invocando direitos históricos e reparações de agravos, como aconteceu a sul, na ex-Jugoslávia. Mas, se exceptuarmos as manobras russas de criação de estados-fantasma e focos de instabilidade (Transnístria, Abkhazia, Ossétia do Sul e, mais recentemente, a Crimeia e o leste da Ucrânia), cujo fito parece ser tolher, enfraquecer e intimidar os países vizinhos, de forma a rodear-se de uma zona-tampão, os restantes países da Europa oriental tiveram a sensatez de esquecer velhos rancores e aceitar como facto consumado as fronteiras de 1945, por muito discutíveis e aberrantes que estas possam ser face ao passado.
Ou seja, perceberam que os ardores patrióticos são sobretudo um produto de imaginações inflamadas e em pouco contribuem para a felicidade e realização dos povos e que o atávico instinto territorial tem sido, antes de mais, uma fonte de incontáveis infortúnios.
O erudito Samuel Johnson definira o patriotismo como “o último reduto dos canalhas”, mas Ambrose Bierce, no Dicionário do Diabo, corrigiu “o ilustrado mas inferior lexicógrafo”, propondo que no lugar de “o último” se devesse ler “o primeiro”. Poderia acrescentar-se que é também o primeiro reduto dos estultos e dos mesquinhos – o tipo de gente que é capaz de arruinar uma boa amizade com o vizinho do lado porque crê que este, num Natal de há 10 anos, lhe ficou com uma Tupperware.
[daqui]
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