Sugerir que as questões morais mais desafiadoras têm respostas óbvias e inequívocas dadas pela cartilha jacobina do radicalismo não é só simplista do ponto de vista intelectual: é moralmente bizarro.
Há muitos anos atrás, o então convictamente liberal Carlos Abreu Amorim publicou um livro simpaticamente intitulado “É difícil ser liberal em Portugal” (Espírito das Leis, 2003). Desde então, Abreu Amorim abjurou o liberalismo e abraçou com empenho a social-democracia, sendo hoje um dos mais proeminentes deputados da bancada do PSD.
Começo por recordar este exemplo porque dois artigos de opinião recentes de colunistas – José Pacheco Pereira e Luís Aguiar-Conraria – também eles identificados em maior ou menor grau com a social-democracia (em sentido mais amplo do que o meramente partidário) evidenciam que continua a ser deveras difícil ser liberal em Portugal em 2016.
Começo pelo artigo de José Pacheco Pereira, desde há muito tempo um dos militantes do PSD com maior espaço mediático e nos últimos anos um feroz crítico de Pedro Passos Coelho em nome da sua concepção de social-democracia. O texto em causa insere-se numa série de intervenções de Pacheco Pereira denunciando o que percepciona como uma intrincada rede de formação de opinião que apoiaria um hipotético radicalismo liberal (ou “neoliberal”) de Passos Coelho e seus apoiantes mais próximos.
É uma posição estranha por várias razões, das quais gostaria de destacar duas. Em primeiro lugar, porque apesar da narrativa dominante repetida até à exaustão na comunicação social deveria ser relativamente fácil para um analista intelectualmente honesto reconhecer que a prática governativa de Passos Coelho, não obstante um ou outro lampejo retórico mais liberal numa fase inicial, foi essencialmente uma social-democracia de contas (mais ou menos) certas.
Em segundo lugar, porque demoniza implicitamente qualquer posição liberal, englobando-a na estranha amálgama (apoiantes de Passos, Portas, Putin, Trump, MPLA e Partido Comunista Chinês) que, na perspectiva de Pacheco Pereira, caracteriza a referida rede e a sua maléfica actuação em moldes mais ou menos conspirativos. Bem sei que foi também há muitos anos atrás, mas é caso para perguntar como qualificaria o Pacheco Pereira de hoje esta posição do Pacheco Pereira de 2005:
«O orçamento devia ser recusado porque precisamos vitalmente de outra coisa, precisamos de mais liberalismo, de mais liberdade económica, de mais espírito empresarial. Sem mais “crise” (das que falava Schumpeter) e sem mais “boa” insegurança, não somos capazes de mudar. O estado tudo faz para nos poupar a essa insegurança, e, como toda a Europa, afundamo-nos, pouco a pouco, na manutenção, geracionalmente egoísta, de um modelo social insustentável a prazo e que nos condena a definhar. É verdade que duvido que hoje alguém consiga ganhar uma eleição propondo o fim do conforto providencial, mas isso remete para a perda de margem de manobra democrática, face ao crescendo demagógico.»
Relativamente ao segundo artigo, de Luís Aguiar-Conraria, a minha perplexidade é ainda maior já que se trata de um geralmente lúcido economista, não obstante as suas marcadas preferências ideológicas de esquerda. O artigo parece ser primariamente motivado pelo desejo de defender a recente ofensiva da “geringonça” contra os contratos de associação. Como já expus a minha posição em artigo recente sobre o tema (O ataque soviético contra os contratos de associação) gostaria no entanto de comentar outros dois aspectos.
O primeiro é a alegação de uma pretensa hegemonia da Igreja Católica na definição do pensamento e actuação da direita em Portugal. Para alguém que esteja minimamente atento ao PSD e ao CDS, esta é uma alegação que só pode ser encarada como uma tentativa (não muito conseguida) de humor. Não só há grande diversidade de opiniões entre católicos em muitos temas políticos, como a presença e influência da Igreja nos partidos é hoje francamente residual. Há certamente muitas filiações e associações de outra natureza que somam pontos para quem deseja ser bem-sucedido na carreira política, mas ser católico está longe de ter efeito similar.
O segundo aspecto é a leveza com a qual Aguiar-Conraria assume que há uma posição “liberal” absoluta e inequívoca para uma lista que inclui alguns dos mais desafiadores e complexos temas para as sociedades contemporâneas. Desde o aborto à eutanásia, sem esquecer o casamento, a posição supostamente “liberal” é tida como devendo ser basicamente equivalente à defendida pela extrema-esquerda fracturante. Aguiar-Conraria vai até ao ponto de invocar o argumento historicista de estar do lado certo da história, o que quer que isso queira dizer.
Dentro do mesmo enquadramento filosófico e moral reducionista e ultra-simplista adoptado implicitamente no artigo – uma caricatura de qualquer doutrina liberal digna desse nome – seria curioso saber as posições que decorreriam para temas como a poligamia, o incesto, a eugenia, a inclusão voluntária de cláusulas de escravidão por dívidas em contratos ou o canibalismo, para dar apenas alguns exemplos.
Precisamente pela sua complexidade, há certamente liberais que defendem posições diferentes sobre muitos dos temas enunciados por Aguiar-Conraria no seu artigo, mas sugerir que algumas das questões morais mais desafiadoras têm respostas óbvias, directas e inequívocas dadas pela cartilha jacobina do radicalismo progressista não é apenas simplista e redutor do ponto de vista intelectual: é moralmente bizarro.
Um episódio que serve para recordar que mesmo alguém inteligente e bem formado pode facilmente ser levado pelo socialismo a adoptar posturas moralmente problemáticas sem sequer reflectir sobre os respectivos fundamentos e implicações. Como frisou Hayek na sua obra “O Caminho Para a Servidão”, «no colectivismo não há lugar para o amplo humanismo dos liberais mas apenas para o estreito sectarismo dos totalitaristas».
Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa
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