Os penalistas Costa Andrade e Germano Marques da Silva consideraram hoje que nem a lei nem a Constituição da República Portuguesa (CRP) permitem que as escutas telefónicas obtidas em processo-crime possam ser utilizadas em processos disciplinares. Os dois professores de Direito Penal falavam à agência Lusa na sequência do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) que entendeu ser "ilegal" a utilização e valorização das escutas telefónicas no processo disciplinar instaurado pela Liga Portuguesa de Futebol contra João Bartolomeu, presidente do Leiria. As escutas telefónicas haviam sido fornecidas pela equipa especial do Ministério Público que investigou um processo em que o presidente do Leiria era arguido. Costa Andrade vincou que nem a lei nem a Constituição permitem a utilização e valorização de escutas em processo disciplinar, pelo que tudo aquilo foi "ilegal".
O professor de Coimbra referiu que já manifestou este entendimento em pareceres e nas próprias aulas de Direito, lembrando que as "escutas são um grande ataque à vida privada das pessoas" e que, como meio excepcional de obtenção de prova, só são possíveis nos crimes de maior gravidade, com moldura penal superior a três anos de prisão ou em certas situações descritas e tipificadas na lei.
Costa Andrade realçou que as escutas nunca poderiam ser admitidas em processo disciplinar porque este último é uma "bagatela" e uma "ninharia", em comparação com um processo crime. Em sua opinião, em "termos de hierarquia e dignidade" há um "abismo" entre o processo-crime e o processo disciplinar, o que reforça a ideia de não ser admissível qualquer tipo de escutas telefónicas. Para Costa Andrade, as escutas são, para todo o efeito, um "ataque à vida privada das pessoas" e num "Estado de Direito as pessoas continuam a ser pessoas quando comunicam por telefone" e, sendo um meio excepcional de obtenção de prova em processo crime, o Ministério Público (MP) não as pode enviar para o processo disciplinar. "Se o MP é o garante da legalidade, quem é que controla as legalidades ou ilegalidades do MP?", questionou.
Germano Marques da Silva, que já deu um parecer sobre este assunto num dos processos crime do presidente do FC Porto, Pinto da Costa, afirmou à “Lusa” que a sua posição é "muita clara" no sentido de que "pelo sistema legal e constitucional" português as escutas telefónicas "só podem ser utilizadas no processo-crime". Além do mais, considera que seria "desproporcional" a utilização e valorização de escutas em processo disciplinar, lembrando que a Constituição só admite "restrições aos direitos fundamentais que sejam proporcionadas em função da gravidade" dos ilícitos criminais. Em seu entender, também o artigo 7 do artigo 188 do Código Penal (escutas telefónicas) é claro no sentido de proibir outra utilização da gravação de conversações telefónicas. "A lei (contida no Código do Processo Penal) é claríssima nessa matéria, ou seja, que as escutas só podem ser utilizadas em processo penal" e nos crimes com moldura penal superior a três anos de prisão, cuja gravidade justifica este meio de obtenção de prova, referiu Germano Marques da Silva.
O penalista frisou que se as escutas não podem ser aplicadas a processos-crime com moldura penal inferior a três anos não faria qualquer sentido que pudessem ser utilizadas num processo disciplinar, cuja gravidade não é comparável. Germano Marques da Silva sublinhou, também, nunca ter tido qualquer "dúvida" sobre esta questão, cuja polémica foi suscitada com o processo "Apito Dourado", que investigou suspeitas de corrupção e tráfico de influências no mundo do futebol profissional e da arbitragem.
Contactado pela Lusa, o magistrado do MP Rui Cardoso disse não ter opinião formada sobre o assunto, mas reconheceu que se trata de "uma questão muito controversa". O magistrado admitiu que é "duvidoso" que as escutas possam ser admissíveis em sede de processo disciplinar, lembrando que a lei diz que as escutas são um meio excepcional de prova apenas admissíveis em determinados processos crime. Observou, contudo, que há factos que podem "simultaneamente integrar crimes e infracções disciplinares" e daí a controvérsia e as "opiniões num e outro sentido". "Não é líquido", assegurou, adiantando que até o STA pode vir a proferir um acórdão em sentido inverso, numa altura em que não há ainda "decisão jurisprudencial, com força obrigatória geral". Esta jurisprudência caberia ao Tribunal Constitucional, após três acórdãos no mesmo sentido.
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