O Governo bairrista
Não se duvidará que os governantes procuram salvaguardar o interesse nacional. No entanto, interpretam o critério de interesse nacional de forma distorcida. Sempre que se debruçam sobre a necessidade de criar sinergias no aparelho de Estado e na administração da coisa pública, assumem como premissa que essas economias só podem ser criadas através da hiperconcentração de recursos. Uma concentração na capital, onde as decisões políticas são, de facto, tomadas. Depois, também as decisões de carácter administrativo se vão concentrando nessa proximidade. E, a partir desse momento, os recursos que existem noutros pontos do país passam a ser vistos como irrelevantes ou obsoletos e, por isso, dispensáveis. Ora, a dispersão de competências não implica, necessariamente, prejuízo ou gasto supérfluo para o todo nacional. Bem pelo contrário, na medida em que os mesmos meios tecnológicos que facilitam a criação de sinergias em modelo unipolar poderiam ser utilizados num modelo multipolar também ele sinérgico, e que teria vantagem pela proximidade aos cidadãos.
O centralismo criou uma nomenclatura cúmplice, viciada num raciocínio simplista. Muitas vezes, encontro, em Lisboa, pessoas bem informadas que, no entanto, não entendem, ou fingem não entender, por que razão a lógica é perversa e facilmente me acusam de bairrista, um rótulo que tenta colocar uma pedra no assunto. Ora, somos nós, os que vivemos fora da capital, que devemos acusar essas pessoas de bairrismo, porque a sua preocupação primeira se concentra na defesa intransigente do meio onde vivem, e desdenham tudo o que vem de fora.
De facto, até o Governo tem tiques bairristas. Veja-se, a título de exemplo, a declaração da secretária de Estado do Tesouro sobre a privatização da ANA. Depois de se mostrar satisfeita com o encaixe obtido, preocupou-se fundamentalmente em salientar que os interesses estratégicos de Lisboa tinham sido salvaguardados. Isto porque, na realidade, o conceito estratégico que presidiu ao modelo de privatização passou por maximizar os resultados financeiros e por defender o hub de Lisboa e as futuras necessidades aeroportuárias da capital, como se o interesse nacional não fosse para além desses dois fatores.
A verdade é que, em razão dessa lógica, a cada Governo centralista, se segue outro ainda mais obstinadamente centralista. Tudo isto porque os diretórios partidários são, também eles, dominados pela obsessão do centralismo, premiando a obediência de quem concorda com essa lógica, ou pelo menos a aceita e não a contesta. Não admira, porque são os diretórios quem define as listas de deputados e a elegibilidade dos candidatos em função da sua posição nessas listas, o que estabelece uma relação de dependência e cumplicidade. Por essa razão, os apelos à descentralização e as reclamações contra a concentração de recursos na capital são feitas por quem está na Oposição. Pelos mesmos que, chegados ao Poder, esquecem esses argumentos e se empenham nas mesmas políticas que antes criticavam, pouco lhes interessando aquilo que disseram ou prometeram aos seus eleitores. O sistema não permite um escrutínio continuado; não exige, sequer, coerência. As promessas feitas pouco ou nada contam, depois de o voto dos eleitores ter sido cativado.
Este problema, tendo dimensão nacional, é particularmente relevante para o Porto. Em primeiro lugar, porque ainda mantém alguns níveis de competência e centros de decisão que desde há décadas já não existem na "província". Depois, porque sempre teve uma grande resiliência cívica, porque nunca se deixou intimidar, porque sempre foi o contraponto a Lisboa. Foi por isso que Paulo Rangel apelou, nesta semana, a um sobressalto cívico. A bem do Porto e de Portugal, chegou a altura de dizer basta.
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