Foi resgatada um ano e meio depois
Patrícia Aguilar fugiu de casa aos 18 anos. Rumou ao Peru, atrás do líder religioso que dizia ser “a reencarnação de Deus”, disposta a ser uma das mulheres com quem ele cumpriria a missão de “repovoar a Terra”. Os pais não desistiram de a encontrar e provar que fora vítima do que chamam “rapto psicológico”. A jovem foi resgatada esta semana, com a filha de um mês ao colo
Durante ano e meio, Patricia Aguilar manteve-se a menina de rosto muito jovem, cujos cabelos escuros e frisados emolduravam um sorriso tímido, em dia de aniversário. Não cresceu. Pelo menos nos jornais espanhóis, onde as notícias foram repetindo a publicação das fotografias desse dia, cada vez que a família vinha a público lembrar o drama vivido desde que Patricia fugira de casa, em Alicante, para se juntar a uma seita religiosa no Perú.
O rosto que voltou às notícias esta quinta-feira perdeu o sorriso e essa alegria tímida da miúda a quem, em redor, cantam os parabéns. Visivelmente mais magra, com o cabelo apanhado e um bebé nos braços, a jovem tem uma expressão levemente triste. É ela, a mesma Patricia, mas poucos seriam capazes de a reconhecer, não fora a legenda, que a situa na zona habitada de Alto Celendín, cidade de Chanchamayo, na selva central peruana. A criança que tem no colo é sua filha.
Há muito de persistência e determinação familiar na operação que permitiu resgatar Patricia Aguilar. Quando a filha saiu de casa sem avisar, no dia 7 de janeiro de 2017 - cumprira há pouco aos 18 anos - os pais depressa perceberam que caminho traçara em segredo. Depois de confirmarem que ela os enganara ao sair enquanto ambos dormiam a sesta, dizendo mais tarde que estava com amigos e que passaria a noite com eles, Alberto e Rosa Maria ficaram assustados. Em busca de pistas, descobriram no quarto da filha folhetos sobre uma seita de nome Gnosis, várias notas e desenhos, além de um formulário de casamento do Peru - o mesmo país onde seria localizado o seu telemóvel.
“Rapto psicológico”, diz o pai
O pai deu também pela falta de dinheiro. Por temerem o pior, juntaram todos os papeis encontrados e apresentaram uma denúncia no Tribunal de Insrução nº 1 de Elche, na província onde residem. As autoridades começaram então a investigar, tanto o desaparecimento da jovem como a própria seita apocalíptica, até chegarem ao nome do seu suposto guru, Félix Steven Manrique, 34 anos, cuja missão ‘divina’ era, segundo o próprio, escolher sete mulheres e repovoar o mundo.
Já esta quinta-feira, depois de a filha ter sido resgatada, mas ainda sem ter tido a oportunidade de estar com ela e perceber como se encontra emocionalmente, Alberto Aguilar repetia que “Patricia foi vítima de um rapto psicológico”.
Terá sido recrutada através das redes sociais. “Procurou uma página esotérica para contar um sonho, quando tinha 16 anos, e Manrique respondeu-lhe”, contou o pai, iniciando-se aí o que ele define como ‘lavagem ao cérebro’. Foi aliás a jovem que meses depois da fuga confirmou aos pais estar com o guru - que também se apresenta como príncipe Gurdjieff -, mas insistindo que partira de livre vontade. O que nunca demoveu a família de a procurar e recorrer às mais altas instâncias de Espanha e do Peru para procurar ajuda.
Incansáveis na sua demanda, os pais contaram também com a ajuda preciosa da associação SOS Desaparecidos. Outros relatos começaram a chegar-lhes, de mais vítimas e até testemunhos, dando conta que Manrique mantinha escravas sexuais. Quando em julho do ano passado, Patrícia acedeu a falar em direto para um programa televisivo espanhol (embora recusando falar com os pais, que estavam no estúdio), justificou-se dizendo que partira por ter uma má relação com os pais. Estava bem, garantia, e não queria voltar para Espanha, até por trabalhar na altura numa ONG chamada Acoracom. Os pais duvidaram. Desmentiram existir um mau relacionamento e conseguiram provar posteriormente que a suposta ONG apresentava como sede um edifício abandonado. Mais. Descobriram que a filha continuava com Manrique, num círculo que incluia outras duas mulheres jovens e quatro crianças pequenas.
Alberto Aguilar voltou a Lima para divulgar o que sabia, multiplicar-se em entrevistas e contactos oficiais. Recorda o “El Confidencial” que conseguiu que a embaixada entrasse em contacto com a filha, para a chamar a regularizar a situação. Esgotado o tempo permitido como turista, a jovem permanecia no país sem qualquer visto, ilegal, portanto. Mas Patricia nunca se apresentou no serviço consular.
O passo seguinte foi a polícia peruana emitir um mandado de busca internacional, com Alberto Aguilar a regressar a Espanha, seguindo a pista de outras supostas vítimas, falando com os seus familiares, em busca de informação que permitisse reconstruir-lhes os passos e chegar ao paradeiro da filha.
Aperta-se o cerco
Um dado importante veio ajudar, em março deste ano. Aguilar foi vista no aeroporto de Santiago de Chile com Manrique. Os passageiros que a reconheceram fotografaram o casal, e pessoal da tripulação testemunhou dizendo que a jovem parecia “drogada”, sendo evidente o controlo a que a sujeitava o homem que a acompanhava, e que não a deixou sozinha “nem por um instante”.
Segundo reconstitui o “El Confidencial”, a polícia pôs-se em campo e há cerca de duas semanas montou uma vasta operação para localizar o líder da Gnosis, que acabou por descobrir numa casa de campo, na companhia de três outras mulheres, nenhuma delas Patricia. Manrique foi preso e será agora investigado, nomeadamente, por tráfico de pessoas e maus tratos, com base nos testemunhos que foram sendo recolhidos e nas denúncias dos diferentes familiares.
A jovem espanhola fora deixada a 45 minutos do local onde o peruano se encontrava, numa zona frequentada por narcotraficantes e com cinco crianças a seu cargo - supostamente todos os filhos de Manrique. A polícia suspeita que o líder da seita estivesse consciente da operação policial e estivesse disposto a fugir a qualquer momento. Sobre Patricia, vivia em condições “infrahumanas”, denunciou o pai, que agora só anseia por regressar a Espanha já com a filha, ainda que não se saiba se é esse o desejo de Patricia. Para já a jovem foi levada para Lima e há o receio que a situação da bebé, nascida no Peru, mas não registada, possa atrasar o seu regresso a casa.
Conhecido das autoridades peruanas
Félix Steven Manrique, que prometia às jovens mulheres que contactava mudar-lhes a vida, a troco de manterem relações sexuais com ele, era um velho conhecido das autoridades peruanas.
Segundo contou ao “El País” uma prima de Patricia Aguilar, o caso era investigado há algum tempo, por existirem outras pessoas desaparecidas e por várias mulheres o denunciarem “por não assegurar a criação dos filhos, por violência familiar e por abusos sexuais”.
Legalmente, a dificuldade de o acusar resulta de se ter envolvido com mulheres maiores de idade, que reconhecem que o envolvimento com Manrique foi consensual. Mas há matéria para investigar, acredita aMayte Rojas, a advogada da SOS Desaparecidos, como o suposto uso de substâncias que retiravam às mulheres o pleno controlo da sua vontade, além de - no caso de Patricia - existirem indícios vários de que “foi induzida a abandonar a sua casa e até a roubar dinheiro aos pais”.
O rasto deixado online por Manrique é também muito vasto, com dezenas de perfis criados com o intuito de seduzir as jovens.
Fundada na Colômbia nos anos de 1950, a Gnosis reclama praticar a “religião-sabedoria dos primeiros tempos da humanidade, o sistema metafísico e oculto das religiões, só acessível para os iniciados”. Tem contornos satânicos e defende que os seus membros são seres iluminados, que “não temem a morte, por saber que ela é uma mera passagem para conseguir a salvação eterna”.
Aparentemente, Manrique, como líder da seita no Peru, foi mais longe, ao considerar ser a própria “reencarnação de Deus”, o que lhe conferia o poder de subjugar as mulheres, garantindo-lhes proteção espiritual.
Ao “Notiamerica”, uma ex-seguidora contou a sua experiência, sob anonimato. Descreveu Manrique como “um homem astuto, hábil, inteligente e egocêntrico”, que usava essa “lábia” para se aproximar das pessoas e as manipular. A convicção com que exprimia as suas ideias tornava-o perigoso, explicou, o que a levou a querer escapar à sua influência, embora tivesse vivido cedido às suas ameaças durante muito tempo. “Devia-lhe respeito, submissão e obediência, dizia-me. E impunha regras muito rígidas de vestuário e de conduta”, recordou. A mulher abandonou a seita em 2017 e só agora diz ter aprendido a controlar o sentimento de medo com que viveu.
0 comentários:
Enviar um comentário