Na cerimónia que decorreu nos jardins da Casa do Roseiral, localizada no interior do Palácio de Cristal, a principal distinção foi atribuída a Rui Veloso, dois meses após Pinto da Costa ter sido homenageado por Rui Moreira. "Fizemo-lo no tempo certo e no lugar certo. E hoje concedemos a medalha de honra da cidade a Rui Veloso, um símbolo da cidade, na sua vertente mais autêntica", disse o presidente da Câmara do Porto.
Leia o discurso do presidente da Câmara do Porto, na íntegra aqui:
"A 9 de Julho de 1832, pela manhã, pouco depois das forças de Dom Miguel terem abandonado o Porto, entraram na nossa cidade as primeiras unidades militares que haviam desembarcado em Pampelido, sob o comando de Dom Pedro IV. E então começou a ser escrita uma página viva da história do Porto. Não tanto, certamente, ao calor da ideia nova ou por ela impelido, quanto aquecido, na quase totalidade daqueles que permaneceram na cidade pela altivez e prosápias de uma cidadania que contava séculos e de toda a vez a manifestar-se com elevação.
E de novo o portuense veio a mostrar-se de alguma forma um tanto liberal à sua moda e fiel a uma coordenada de evolução; amigo devotado da terra sua, homem que sofre e labuta, que sabe ser grato e admirar, que sabe aplaudir e sabe acarinhar, que deixa o coração abrir-se em gratidão ou esquece de pronto uma ofensa.
Citei a História da Cidade do Porto de Artur de Magalhães Basto, para relembrar a escolha deste 9 de Julho para a entrega anual das medalhas e para relembrar características que continuam a ser o apanágio dos nossos.
Sim, o Portuense continua a ser liberal à sua moda, e continua a ser grato e admirar.
É essa nossa forma um tanto liberal que nos leva a que a escolha dos homenageados não seja feita por um presidente de câmara ou por uma comissão: a escolha resulta da coordenação de todas as forças representadas no Executivo e na Assembleia Municipal, fazendo que as propostas de uns passem a ser, no final, uma resolução comum.
É essa admiração que nos move, ao condecorarmos as instituições, mulheres e homens, que aqui compareceram hoje para lhe demonstrarmos a nossa gratidão. Em nome de todos os portuenses, em nome da cidade.
Minhas Senhoras e meus senhores,
Bem sei que vivemos um tempo de acelerada mudança na cidade. Quando, daqui a umas décadas, assente que esteja a poeira de hoje e dissolvida a espuma dos dias, quando então se fizer a história destes anos, não se deixará de reconhecer que este foi um período em que o Porto mudou muito. E, como sempre sucede quando uma cidade sofre de uma aceleração brusca, concluir-se-á que tudo o que se ganhou foi, porventura, à custa de alguma coisa que se perdeu. Foi assim com os Almadas, foi assim em finais do século XIX.
As cidades são territórios complexos, com dinâmicas que se entrecruzam. E, naturalmente, tenho bem a consciência de que as escolhas que estamos a fazer introduzem alterações muito significativas no tecido urbano da cidade, e terão inevitáveis consequências no seu tecido social.
Essa é uma preocupação que temos presente, e que nos inspira todos os dias. Porque temos bem a consciência que, para além dos grandes desígnios há, também, o cidadão comum, tantas vezes vulnerável, tantas vezes carenciado, tantas vezes incompreendido, tantas vezes a braços com angústias e aflições.
Sei tudo isso. Mas também sei que, se nada fizesse, se nada mudasse, o tempo encarregar-se-ia de aumentar os problemas, sem qualquer benefício ou contrapartida.
E, olhando a cidade e as suas exigências futuras, não posso é prender-me a uma visão romântica e arqueológica que facilmente ilude a realidade.
Todos sabemos que, no início deste século, a cidade estava muito, muito, doente. Basta recordar o que sucedia, então, no Centro Histórico do Porto, apesar de elevado a Património da Humanidade. Basta pensar o que então se escreveu sobre a ameaça que pairava sobre essa classificação pela ruína e pelo abandono. Ou lembrar a realidade de Campanhã, sempre esquecida, e que temos tentado inverter.
Aquilo que nós recordamos, se fizermos um esforço sério de memória, é que no virar do século tínhamos uma cidade exausta e abandonada, em que havia terríveis bolsas de pobreza e de exclusão. Uma cidade envelhecida, esboroada em decadência e em acelerado processo de desertificação no seu centro.
Hoje, a cidade está diferente. E, não tenham dúvidas, estará mais diferente dentro de alguns anos, quando os projetos que hoje temos em curso forem concluídos e amadurecerem, criando as suas externalidades. Projetos consensuais, porque eram há muito reclamados e prometidos, e só não haviam sido concretizados por falta de recursos e por falta de capacidade política para os implementar. Projetos menos consensuais, outros, porque é inevitável que assim seja, mas ainda assim amplamente discutidos.
Naturalmente, esta transformação não atenuará, só por si, os desequilíbrios sociais. Haverá, por isso, quem não possa entusiasmar-se com a mudança. Mas, aqueles que temem estes impactos, que gostariam que tudo ficasse na mesma, que o Porto se transformasse numa memória histórica com cultura de subúrbio, esses não serão certamente capazes de demonstrar que melhor seria se tudo ficasse na mesma. Tanto mais que não teria ficado, porque não se podendo congelar a cidade numa cápsula do tempo, ela continuaria a murchar.
Sim, houve um tempo em que o Porto teve saudades do seu futuro. Hoje, o Porto pode viver com a inevitável e salutar saudade do seu passado, mas pode mitigar essa nostalgia com a esperança do seu futuro. Hoje, o Porto tem um desígnio próprio, que motiva os cidadãos, que recuperou o seu orgulho.
Naturalmente, este Porto não pode esquecer as suas tradições, não pode descuidar os seus focos mais vulneráveis. Não se pode estrangeirar. Mas isso só sucederia se, porventura, nos tivéssemos resignado. Se tivéssemos uma visão tecnocrática da cidade. Foi por isso que, quando propusemos esta mudança, elegemos a cultura como grande vetor da política da cidade. Porque é a cultura, quando chega a todos, que nos eleva enquanto sociedade e nos permite ser verdadeiramente cosmopolitas.
A aposta continuada e sistemática na cultura - democratizada e acessível - garantirá a resiliência e a diferenciação da nossa sociedade, e fará com que a cidade continue a ser diferente, utilizando as suas características e as suas tradições como ponto de partida, e não como porto de chegada.
Sim, tal como no século XIX, o Porto continuará fiel a uma coordenada de evolução. Será cosmopolita, porque terá contactos com pessoas e coisas de muitos países. E por isso será mais aberta e tolerante. Por isso, acentuar-se-á a sua heterogeneidade, misturando estilos, pessoas, gostos e saberes.
Não, o Porto não será um parque de diversões. Porque não o queremos nem vamos construir essas diversões. O Bolhão, o Rosa Mota, o Terminal Intermodal, o Matadouro Municipal, o Parque Oriental, um Teatro Municipal, uma nova ponte não são diversões. São projetos pensados para nós, para quem aqui vive ou trabalha, para quem cá venha também. Não são gentrificadores: bem pelo contrário, são projetos dirigidos aos nossos cidadãos, são projetos que farão do Porto uma cidade mais confortável e interessante. Uma cidade sustentável.
Minhas Senhoras e meus senhores,
É esta nossa cidade que hoje homenageia, mais uma vez, alguns dos seus melhores. Como bem sabem, homenageámos o Senhor Jorge Nuno Pinto da Costa, e fizemo-lo no tempo certo e no lugar certo. E hoje concedemos a medalha de honra da cidade a Rui Veloso, um símbolo da cidade, na sua vertente mais autêntica.
Mas não esquecemos outros cidadãos e instituições que se têm notabilizado no Porto. Temos orgulho de sermos portuenses, temos orgulho em homenagear aqueles que melhor interpretam as virtudes da cidadania portuense.
É essa cidadania, com esse estilo próprio a que um jornal francês chamou de "portocracia", que me permite olhar o futuro com confiança e com otimismo.
Num tempo em que os ventos perdidos dos anos de chumbo do século passado voltam a assombrar o Mundo, em que regressam os sintomas de xenofobia, em que os demagogos e populistas tentam granjear apoios à custa dos medos, das aflições e dos receios, só uma cidadania culta, adulta e exigente pode garantir que a nossa sociedade é capaz de vencer os desafios que se colocarão nos próximos anos. Uma exigência que se coloca a nós próprios, na elevação do civismo, no combate às assimetrias, na construção de um ambiente sustentável.
Uma exigência que não deixaremos de colocar, também, sobre a governação do país, reclamando o justo quinhão a que temos direito, e que tantas vezes nos tem sido sonegado pelo centralismo absurdo.
Sim, nós sabemos que essa exigência é mal vista e mal quista. Sabemos que, para muitos, as nossas reclamações perturbam o status-quo instalado. Sabemos que nos apelidam de bairristas. Compreendemos que somos incómodos quando protestamos, quando denunciamos. Sabemos tudo isso. Mas, não se enganem, não nos deixaremos abater.
Não nos conquistarão com os cantos das tágides. Não nos contentarão com elogios, nem nos vencerão pelo cansaço.
O Porto conseguiu, a pulso, pelo empenho e mérito de muitos, um reconhecimento que não tinha para além das nossas fronteiras. Com a sua marca, com a sua identidade, com a sua história de sucesso. Um sucesso que se deve aos seus cidadãos que sofrem e labutam e se reflete, também, nas contas do município, que nos proporcionam uma extraordinária liberdade. Uma liberdade que não está condicionada. É isso, estou certo, que não trocaremos nunca.
Não, o Porto não tem complexos, nem quer ser capital de coisa nenhuma. Quer, apenas, que lhe seja reconhecido o estatuto a que tem direito: ser uma cidade capaz de concorrer com as suas congéneres europeias, assumindo as competências que o Estado central pode e deve descentralizar, de acordo com a Constituição da República, recebendo para isso aquilo que é justo e a que tem direito. E não deixará de assumir os encargos que lhe caibam sempre que estiver em causa a solidariedade tão necessária, sempre reclamada, e nunca concretizada, para que seja realizada uma justa coesão territorial.
Não pode Portugal continuar a insistir em recolher benefícios das políticas europeias de coesão, e persistir em não aplicar igual princípio ético no território nacional. Não podemos continuar a viver num país em que tudo aquilo se concentra numa parte do território, e em que qualquer tentativa de mudar esse estado de coisas depara com obstáculos intransponíveis.
Mesmo quando nos sentimos cercados, como estivemos depois desse 9 de Julho de 1832, sabemos que, no final, venceremos. E, tal como então, seremos capazes de fazer com que esse triunfo resulte num benefício não apenas para as nossas gentes, mas também para o todo nacional".
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