As cartas de Clenardo sobre Portugal e os portugueses de 1535… ou 2012?
Humanista e pedagogo do Renascimento, Nicolau Clenardo, permaneceu em Portugal durante cerca de cinco anos , e foi em Março de 1535 que escreveu a Látomo, as famosas Cartas de Clenardo, que falam sobre Portugal e os portugueses da época. Nada disto seria estranho, não fosse que mais de 470 anos depois dessas cartas terem sido escritas, parecem descrever o Portugal e os portugueses de hoje…
Sobre os portugueses:
Falando sobre os portugueses, Clenardo sublinha três aspectos dominantes: a preguiça, a vaidade e a devassidão.
- a preguiça:
Na opinião de Clenardo, os portugueses são o povo mais preguiçoso do mundo. Os alentejanos são ainda pior do que os outros, pois ele considera o Alentejo praticamente como uma região africana:
“Se há algum povo dado à preguiça, sem ser o português, então não sei eu onde ele exista. Falo sobretudo daqueles que habitam além do Tejo, e que respiram de mais perto o ar de África. (Clenardo 1926:271)
Segundo Clenardo, os portugueses querem sempre trabalhar o menos possível:
“Em Portugal, todos somos nobres, e tem-se como uma grande desonra exercer alguma profissão. (Clenardo 1926:273)
O resultado é que a agricultura se arrasta miseravelmente e que há uma grande falta de artífices:
“Se algures a agricultura foi tida em desprezo, é incontestavelmente em Portugal. (Clenardo 1926:271)“Aqui não há grande abundância de artífices, e não é costume que eles ofereçam as suas mercadorias. (Clenardo 1926:273)
Para sustentar a economia, os portugueses precisam de artífices estrangeiros e de escravos:
“Se uma grande quantidade de estrangeiros e de compatriotas nossos não exercessem cá as artes mecânicas, creio bem que mal teríamos sapateiros ou barbeiros. (Clenardo 1926:271)“Os escravos pulam por toda a parte. Todo o serviço é feito por negros e mouros cativos. Portugal está a abarrotar com essa raça de gente. Estou a crer que em Lisboa os escravos e as escravas são mais que os portugueses livres de condição (Clenardo 1926:273)
Até há portugueses que criam escravos para eles fazerem bons lucros com a venda dos filhos nascidos em casa:
“Chega-me a parecer que os criam como quem cria pombas para levar ao mercado. Longe de se ofenderem com as ribaldias das escravas, estimam até que tal suceda, porque o fruto segue a condição do ventre. (Clenardo 1926:274)
- a vaidade:
Nas suas cartas, Clenardo sublinha que os portugueses não só detestam o trabalho, como também querem viver como grandes senhores. Na sua opinião, o português vive para o público, faustosamente:
“Há aqui uma chusma desses faustosos, que trazem todavia pela rua atrás de si maior número de criados do que de reais gastam em casa. (Clenardo 1926:279)
Para poderem viver desta maneira, os portugueses às vezes até passam fome:
“Se quisesse condescender com os costumes desta terra, começaria por sustentar uma mula e quatro lacaios. Mas como seria possível? Jejuando em casa, enquanto brilhava fora como um triunfador. (Clenardo 1926:279)
- a devassidão:
Segundo Clenardo, os portugueses são, para além de serem preguiçosos e vaidosos, devassados:
“Vénus, em toda a Espanha, tem culto público não menos que outrora em Tebas, e mormente em Portugal então, onde creio que seria uma coisa extraordinária ver um mancebo contrair uma ligação legítima. (Clenardo 1926:274)
Clenardo insiste que todos os portugueses acabam por se comportar dessa maneira, há somente uma importante excepção: a corte portuguesa.
“Nem a nobreza da sua origem, nem a sua alta hierarquia, nem as riquezas o impediram de se dedicar ao estudo. Que, apesar da púrpura, os filhos del-rei D. Manuel vivem tão modestamente, que mal excedem em grandeza aos homens do povo. (Clenardo 1926:382)
Clenardo sobre a vida em Portugal:
Clenardo queixa-se muitas vezes da carestia da vida em Portugal. Embora ganhe o dobro do que lhe dava a sua pátria, não tinha que encarecer excessivamente essa quantia.
“Não há terra onde todas as coisas sejam tão caras; não direi sequer que um thaler do Reno em Lovaina vale mais do que um ducado de oiro aqui em Portugal. (Clenardo 1926:271)
Para poder explicar melhor, Clenardo dá o exemplo do custo da barba:
“Que diria, santo Deus!, o meu tio, o recebedor de Diest, se eu lhe fosse pedir para tratar da barba uma renda anual de quinze florins, – quantia que excede o património de muito boa gente! E não obstante, tenho vivido assim há perto dum ano. Se eu oferecer menos, o homem da navalha não voltará, e (o que vos ajuda melhor a conhecer estas criaturas) não voltará ainda que se insiste com ele. (Clenardo 1926:272)
Excertos de «As cartas do humanista Nicolau Clenardo sobre Portugal», Jeroen Dewulf
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