“Abdessalam T. chegou a Portugal em outubro de 2013, com identificação falsa, fugido — justificou ele à chegada ao aeroporto de Lisboa — dos que o perseguiam no país natal, onde era polícia, opositor do regime e defensor de uma orientação islamita mais radical. Detetado durante o controlo documental, pediu asilo evitando o retorno imediato.”
Portanto chega aqui um cidadão marroquino que pretende “uma orientação islamita mais radical” para o seu país (de cuja capital Lisboa dista tanto quanto de Madrid) e Portugal trata-o como se ele fosse um defensor da democracia: concede-lhe asilo, mais cama, roupa lavada, uns subsídios e presumo que alimentação confeccionada segundo os ditames da sua “orientação islamita” devidamente identificados naquele manual para “Acolhimento de refugiados” editado pela a Direcção-Geral da Saúde que nos recomenda coisas tão extraordinárias quanto “Fique atento aos seus próprios preconceitos e preferências e coloque-os de lado” para em seguida discriminar todas as formas de preconceito dos ditos refugiados que temos de respeitar com escrúpulo e que vão desde as “restrições de género consubstanciadas na recusa de mulheres serem observadas ou cuidadas por profissionais do sexo masculino. É de extrema importância que estas limitações sejam esclarecidas e respeitadas, para que o apoio tenha a maior qualidade possível” ao problema do sabor a baunilha nos pudins e as passas de uva nos bolos pois há o risco de as mesmas terem sido conservadas com álcool. (Sem esquecer a necessidade de desinfectar as cozinhas para que as mesmas não fiquem conspurcadas pelo lombo de porco ou pela caixinha de banha.)
Felizmente para nós o senhor Abdessalam T. não se sentiu ofendido com o trato que lhe dispensámos e, devidamente munido do bendito estatuto de asilado político, coisa que para os não islâmicos se aplica a umas pessoas regra geral bem mais democráticas que os respectivos governos, lá partiu para a Europa onde, segundo autoridades várias, estaria a captar voluntários para morrerem matando o maior número de pessoas, nuns actos a que até há alguns anos se chamava terrorismo. Como se sabe o terrorismo entretanto passou a “incidente causado por pessoas com perturbações” e agora já vai no item de comportamento “sem motivo”, como por estes dias declararam as autoridades britânicas a propósito do atentado levado a cabo por Khalid Masood em Westminster.
Um dos exercícios mais constrangedores da nossa sociedade é a tentativa de pensar pelo terrorista, como se os seus actos fossem não uma expressão da sua vontade mas sim a resposta desacertada à violência ou aos crimes que outros exerceram sobre eles ou sobre os seus antepassados. Este exercício levou em anos não muito distantes a explicações fabulosas para a actividade dos bascos da ETA, cujas bombas e balas chegaram a ser apresentadas entre nós como uma revolta contra a pobreza, quando o País Basco era uma das regiões mais abastadas de Espanha.
Com o terrorismo islâmico a discussão é imediatamente transferida para o problema do anti-Islão. E a partir do momento em que a expressão anti-Islão entra na discussão chegou a hora de sair para qualquer pessoa que queira viver e sobreviver em paz, sem irritar as redes sociais, os humoristas do regime e as redacções. Afinal o truque é velho mas resulta sempre: primeiro imputa-se aos outros o que eles não pensam ou atribuem-se-lhes qualidades ou mais propriamente a falta delas por causa daquilo que pensam. Depois já não se discutem os factos mas sim a personalidade de quem pretende falar deles.
Em Portugal esta técnica produziu até essa espécie de endemismo nacional que é o “retornado ressentido”. O que distingue um retornado ressentido de um retornado não ressentido? Tendo sido forçados a deixar África entre 1974 a 1976, ambos, ressentidos e não ressentidos, tiveram de aceitar que eram retornados e não refugiados mas o segundo, o não ressentido, isentava os governantes do pós 25 de Abril de quaisquer responsabilidades por essa sua fuga, culpando naturalmente Salazar. Já o ressentido obstinava-se em acusar Rosa Coutinho, Mário Soares ou Almeida Santos.
Portugal colecciona aliás outros grupos que admitindo-se que existam padecem de um pecado original como é o caso do anti-comunista primário. Em teoria, Portugal admite que alguém seja anticomunista, desde que não seja primário, claro está. Mas tanto quanto se sabe até à hora em que escrevo este texto nunca mas nunca se encontrou um anticomunista que não fosse primário. Mais afortunados são os católicos que sempre se podem redimir se forem considerados progressistas, muito particularmente pelos ateus.
Assim, não sendo novidade esta falaciosa transferência da discussão sobre os assuntos para o perfil moral de quem os discute – não se discutia o Gulag mas sim o facto de quem o denunciava estar ao serviço da reacção – voltemos ao senhor Abdessalam. O que leva Portugal a dar asilo político a alguém que pretende “uma orientação islamita mais radical” para Marrocos? Alguém tem a noção das implicações para Portugal e para a Europa do triunfo de tal orientação islamita mais radical em Marrocos? Não basta já a loucura com que se apoiaram as primaveras árabes que acabaram no presente e tenebroso Inverno, loucura a que escapou precisamente Marrocos?
E onde cabe nessa “orientação islamita mais radical” a actividade “em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana” que oficialmente determina que se conceda asilo político a alguém? Marrocos não é uma democracia perfeita, longe disso, mas é certamente muito mais livre sem a tal “orientação islamita mais radical” defendida pelo senhor Abdessalam.
Todos os dias, em diversos locais da Europa, casos como os de Abdessalam confrontam-nos com uma pergunta: como é isto possível numa Europa onde convivem sem quaisquer problemas milhões de católicos, protestantes, budistas, hindus, judeus? Numa Europa em que milhões de pessoas migraram sem que isso causasse qualquer tensão? É possível porque depois de décadas às voltas com a luta de classes a esquerda, os jornalistas-activistas, os cientistas sociais e demais engenheiros das almas deixaram cair os operários, que de imediato se tornaram no lixo branco e muitos deles votantes da extrema-direita, para apostarem na exploração do ressentimento, seja ele grupal, étnico ou religioso.
Os radicais muçulmanos não inventaram nada. Eles, como todos os outros radicais que os antecederam, sabem que o seu melhor aliado não é o ódio que eles sentem pelo outro, no caso o Ocidente, mas sim a falta de admiração e às vezes o ódio que muitos ocidentais sentem pela sua própria cultura e modo de vida.
[Helana Matos, aqui]