É arrasadora a indiferença dos partidos aos
critérios éticos. Mas alguém se importa? O facto de as recentes eleições de
Ricardo Rodrigues e António Gameiro mal terem sido notícia é esclarecedor.
A qualidade de uma democracia republicana
mede-se, entre outras vias, pelo comportamento dos seus representantes, tanto
governantes como parlamentares. Isto porque os nossos regimes liberais não são
apenas compostos de regras, leis, instituições, freios e contrapesos. O
cumprimento da lei não chega – de nada servem as regras e as instituições se
umas não forem cumpridas e outras não forem respeitadas, mesmo quando assim a
lei o permite. Os regimes liberais distinguem-se, para além da forma de
governo, pela sua dimensão moral. Estão suportados em pilares éticos e são mantidos
por quem acredita nos valores da liberdade, igualdade, justiça, dignidade
humana, diversidade, tolerância. E, como tal, a credibilidade de um sistema
político perante os cidadãos assenta, também, no reconhecimento do respeito por
esses valores por parte dos seus representantes – e não, somente, do
cumprimento da lei e das regras, pois algo ser legal não significa que seja
ético.
É por isso que, em várias democracias maduras,
os políticos abandonam as suas funções quando se vêem envolvidos em casos que
põem em causa a sua idoneidade enquanto servidores públicos. Só no último ano,
exemplos não faltam. Bruno
Le Roux, ex-ministro do Interior em França, demitiu-se devido à contratação
das suas filhas para assistentes parlamentares. Aida
Hadzialic, ex-ministra da Educação na Suécia, demitiu-se por ter sido
apanhada a conduzir sob efeito de álcool (0,2 g/l). Keith
Vaz, ex-deputado inglês do Partido Trabalhista, demitiu-se por se ver
envolvido num caso de prostituição masculina. Ard van
der Steur, ex-ministro da Justiça da Holanda, renunciou ao cargo face à
acusação de que, em 2001, teria ocultado informações ao parlamento sobre um
caso de corrupção de justiça.
José Manuel Soria, ex-ministro espanhol da Indústria, demitiu-se após ter
sido conhecida a sua relação com empresas em paraísos fiscais. Sigmundur
Gunnlaugsson, ex-primeiro-ministro da Islândia, renunciou ao cargo quando
se viu envolvido no escândalo dos Panama Papers. E por aí fora.
Em Portugal, resiste uma certa dificuldade em
compreender esta lição elementar: o regime tem de manter uma dignidade moral e
quem ocupa cargos públicos tem de estar acima de qualquer suspeita. Aliás, um
dos debates deste tempo ilustra bem o problema: não se precisa dos tribunais
para afirmar que Sócrates, enquanto agente político, é culpado – basta saber
que, enquanto primeiro-ministro, viveu às custas de transferências ocultas de um
amigo com quem o Estado mantinha negócios. Mas se Sócrates é um óbvio caso de
polícia, a cena política portuguesa está repleta de situações cuja
inconsequência envergonha.
Carlos César (PS) tem toda a sua família empregada em
cargos públicos, incluindo posições de nomeação. Ricardo Rodrigues (PS), célebre por ter sido condenado em
tribunal pelo roubo de gravadores a jornalistas durante uma entrevista, foi
escolhido pelo PS e há semanas eleito pelo parlamento para o Conselho Superior
dos Tribunais Administrativos e Fiscais. António Gameiro (PS), conhecido por
ter sido condenado em tribunal pela apropriação indevida de 45 mil
euros de uma cliente (e com pena agravada pelo Tribunal da Relação), foi
(novamente) eleito para o Conselho de Fiscalização do Sistema Integrado de
Informação Criminal. E, menos recente mas interessante de comparar com o que
sucedeu na Suécia, Glória Araújo (PS), à época deputada (2013), foi apanhada
pela polícia a conduzir sob efeito de álcool (2,41 g/l) – e recusou renunciar.
Todos os exemplos recentes são do PS? Sim, como
seriam do PSD se estivesse no governo – o poder permite aos partidos agir à sua
conta e vontade. Eis a arrasadora indiferença dos partidos aos critérios
éticos, sobretudo quando integram a maioria parlamentar. Ora, é fácil (e justo)
apontar o dedo aos partidos. Mas tudo isto apenas acontece porque se entrega
aos políticos a decisão em benefício próprio, sem ter contrapeso na sociedade
civil – isto é quem proteja o sistema político, denuncie e pressione os
partidos a alterar comportamentos que, sendo legais, não são éticos. Só que, no
fim de contas, ninguém se importa realmente. O facto de as recentes eleições em
plenário da Assembleia da República (Ricardo Rodrigues e António Gameiro) mal
terem sido notícia é prova suficiente. Depois não há surpresas: quem não se dá
ao respeito não é respeitado.
[ Alexandre Homem Cristo, aqui ]
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