Kosta de Alhabaite

Nortenho, do Condado Portucalense

Se em 1628 os Portuenses foram os primeiros a revoltar-se contra o domínio dos Filipes, está na hora de nos levantarmos de novo, agora contra a corrupçao, o centralismo e colonialismo lisboeta!

SYRIANA

No sábado passado fui com a minha Querida Mulher ver este filme ao Arrábida. Eis os comentários:

Syriana – A Indústria do Petróleo
Direção: Stephen Gaghan
Elenco: George Clooney, Matt Damon, Alexander Siddig, Jeffrey Wright, Christopher Plummer, Chris Cooper, Amanda Peet, William Hurt, Tim Blake Nelson, Sonnell Dadral, Mazhar Munir, Amr Waked, Max Minghella
Duração: 126 minutos

“Quando um país que tem 5% da população mundial é responsável por 50% dos gastos militares do planeta, é porque seu poder de persuasão está em declínio.”

É um filme tão complicado que escrever sobre ele provoca uma sensação de desorientação. Encontrar uma maneira de exprimir essa sensação desnorteante é o objectivo maior desta resenha sobre o filme de Stephen Gaghan, pois essa é a sensação que o leitor terá quando assistir ao filme. Fique com a seguinte imagem: alguém desmonta um jogo de quebra-cabeças e atira as peças na sua frente. Você olha o jogo desmontado e sabe que as peças, se montadas, mostrariam uma só imagem. Só que você não consegue encaixá-las. “Syriana” é assim, e é um filme tão complicado quanto fascinante.

O filme constrói um mosaico fascinante de sete ou oito histórias paralelas, envolvendo duas dúzias de personagens, para abordar a relação entre as grandes potências econômicas e o Oriente Médio. A classificação de “thriller geopolítico”, conferida ao trabalho pela crítica norte-americana, é adequada, mas não suficiente, porque não existe um fio condutor, nem um mistério a ser resolvido (apenas duas das histórias envolvem investigações). A trama intrincada interliga terrorismo, agentes secretos, advogados ricos, iraquianos pobres, política e economia internacional, formando um painel cínico e pessimista sobre o Médio Oriente. O pano de fundo de tudo isso é o petróleo. “Syriana” afirma, com todas as letras, que o óleo negro está na raiz de todas as questões importantes – econômicas, sociais e até religiosas – que envolvem aquela região do globo. Traça, pois, um amplo painel das relações profundamente obscuras entre governos e empresas de vários países visando à exploração e à comercialização do petróleo.

A acção do filme passeia por dezenas de cidades e países, incluindo Washington, Houston, Málaga, Washington , Texas, Genebra, Paris, Berlim, Londres, Tel-Aviv, Beirute, Cazaquistão e vários outros locais do Médio Oriente além, é claro, de um país fictício que provavelmente explica o título (de acordo com a
Wikipedia, “Syriana é um nome usado para se referir à Síria e, em outros contextos, como um rótulo arbitrário para nações hipotéticas que se assemelhem em graus diferentes àquele país. (...) Também é um termo usado em Washington para descrever uma remodelação hipotética do Médio Médio”.). Não há cenas de acção, e quase todas as sequências contêm longos diálogos. O roteiro de Gaghan foi baseado em um livro escrito por um ex-agente da CIA (See no Evil, de Robert Baer), sujeito que inspirou levemente o personagem de George Clooney. O astro, aliás, é um dos produtores do filme, que financiou através da Session Eight, empresa que possui ao lado de Soderbergh. Clooney engordou quase 20 quilos, deixou a barba crescer e sofreu uma lesão na medula que afetou sua memória, durante uma cena de tortura (que está no filme). Ele personifica a imagem que fica de “Syriana”: desorientação e pessimismo. Este é um dos melhores longas-metragens de 2005.

A expressão perfeita para classificar “Syriana” é o termo “hyperlink movie”, criada por blogueiros norte-americanos. O conceito diz respeito a produções que narram várias histórias interligadas. Os protagonistas de uma história se transformam em coadjuvantes de outras, e assim por diante. Robert Altman é um director especialista nessa técnica (“Short Cut” e “Assassinato em Gosford Park” são apenas alguns exemplos). Filmes como “Amores Brutos”, “Magnólia” e “Crash – No Limite” também se encaixam nele. O director não é um novato nesse tipo de trama; recebeu um Oscar pelo roteiro de “Traffic”, de Steven Soderbergh.

O filme jamais cai na tentação de explicar ou justificar moralmente os eventos que mostra. Tem um enredo extremamente intrincado, de inteligência muito acima da média (isso fica evidente nos diálogos, que circundam os temas sem a intenção de explicá-los em demasia) e é deliciosamente amoral. Não é um filme para quem gosta de relaxar no cinema, inclusive porque oferece um panorama assustador, e pessimista, da questão do Médio.

Na resenha que escreveu sobre “Syriana”, o crítico Roger Ebert disse o seguinte: “O enredo é tão complexo que não se supõe que devamos entendê-lo; somos envolvidos por ele. Se nenhum dos personagens consegue ver o quadro inteiro, porque nós deveríamos?”. A lógica é perfeita. Ao criar um filme interligando várias histórias que giram ao redor de um único tema, o petróleo, todas repletas de detalhes obscuros e complicados, Gaghan – que além de dirigir também escreveu o roteiro – provoca uma dificuldade quase intransponível para que o público consiga ver o painel sugerido pelo filme por completo. Se prestar bastante atenção, você consegue fazer conexões que o filme não realiza. Obrigar o público a participar activamente da projecção, raciocinando sobre o que vê, é um trunfo dos bons thrillers.

Qual o objectivo dessa complicação toda? Talvez seja mostrar que, embora inúmeros sectores da economia, da diplomacia e da política mundial tenham papéis de destaque a desempenhar no Médio Oriente, provavelmente nenhum deles possui uma idéia do quadro completo da situação. O filme sugere – mas não afirma, pois é mais subtil e complexo do que isso – que existem conexões entre a actuação dúbia da CIA em países como o Líbano e o recrutamento de homens-bomba entre os desempregados do Irão. Que uma conversa dentro de um palácio na Cazaquistão repercute no casamento de um consultor de empresas estabelecido em Genebra. Que uma reunião de empresários em Washington (EUA) se relaciona com a sucessão no trono de países do Médio Oriente. E por trás de tudo está a mancha negra do petróleo. É por aí.

Os personagens de “Syriana” não são heróis ou vilões. São gente normal, capaz de atitudes banais e extraordinárias, inteligentes ou ingênuas, boas e más. O filme de Stephen Gaghan não cai no erro de “Crash”, cujos personagens têm, cada um, pelo menos um par de cenas – uma em que desempenha o papel de mocinho e outra em que vira bandido. Em “Syriana”, há muitas áreas de sombra entre as duas coisas. O filme defende a tese de que o mundo é complicado demais para ser explicado em termos de dualidades. “Syriana” aposta, para usar uma palavra em desuso desde a queda da URSS, na dialética. Ou seja, o mundo é o resultado de uma soma de forças cuja totalidade só conseguimos intuir, não compreender.

O melhor exemplo disso talvez seja o personagem de Matt Damon, o consultor Bryan Woodman. Ele é um homem honesto, um pai de família atencioso, que trabalha em Genebra para uma empresa petrolífera. A trabalho, vai a uma festa no palácio de um sheik árabe multimilionário. Durante a festa, o filho de 6 anos dele sofre um acidente. Alguns dias depois, o sheik o chama para uma reunião e lhe oferece um contrato de US$ 100 milhões. “Quanto me paga pelo outro filho?”, responde Woodman, furioso. Depois de reflectir, contudo, ele aceita o dinheiro, o que causa ira na sua mulher, Julie (Amanda Peet). Ele agiu certo ou errado? Você largaria um lucrativo e legítimo contrato de trabalho, pelo qual lutou, porque acha que a oferta pode ter uma motivação emocional, sendo uma compensação pelo acidente? Recusar o contrato seria uma atitude mais ética? Quem sabe?


Não há, aqui, uma lógica visual que situe o público quanto à história que está acompanhando em determinado momento – e, assim, é bastante provável que muitos saiam do cinema sem compreender exactamente todas as subtis relações entre os personagens (e que ficam muito mais claras em uma segunda visita ao longa). No entanto, assimilar todas aquelas ligações não é realmente importante – e aí é que reside o brilhantismo do roteiro de Gaghan: mais relevante do que entender que uma investigação liderada pelo advogado vivido por Jeffrey Wright acabará influenciando na decisão da CIA em cortar laços com o agente de George Clooney é perceber, mesmo que “instintivamente”, como uma decisão corporativa pode levar um jovem muçulmano a se tornar um terrorista suicida – e isto o filme consegue fazer de forma inequívoca. Trata-se de um roteiro inteligente, estruturado com maestria e que exige que o público pense, em vez de se limitar ao papel de espectadores passivos.

Quando a fusão entre duas empresas de exploração de petróleo é anunciada, por exemplo, uma investigação por parte do governo norte-americano tem início a fim de determinar se o negócio fere alguma lei federal ou se houve tráfico de influência ou mesmo suborno no processo. No entanto, como logo percebemos, o governo quer que a fusão seja concretizada, já que isso aumentará a influência do país no Médio Oriente, resultará em novos empregos e – o mais importante – facilitará o acesso ao cada vez mais escasso petróleo. Assim, de maneira directa ou indirecta, são as corporações que estabelecem as políticas oficiais, conferindo um poder cada vez maior aos burocratas e executivos cujo único interesse é o lucro, não o bem comum. Por outro lado, é inevitável que a actuação ianque em uma região já naturalmente explosiva acabe envolvendo os fundamentalistas religiosos que, por sua vez, utilizam o Corão para recrutar jovens insatisfeitos que, sem abrigo, trabalho ou comida, encaram a religião como solução para todos os seus problemas, transformando-se eventualmente em soldados dispostos a morrer pela Fé.

Desempenhando papel de protagonista num jogo perigoso e sem a menor ética, o governo dos Estados Unidos não hesita em interferir em questões internas de outras nações quando seu interesse é ameaçado – daí guerras como a do Golfo, a invasão ao Iraque e mesmo a negativa em assinar o tratado de Kyoto. Para ilustrar uma visão inescrupulosa que o governo dos Estados Unidos não hesita em interferir nas questões internas de outras nações quando seu interesse é ameaçado, Syriana cria a figura trágica do Príncipe Nasir Al-Subaai que, depois de ceder os direitos de exploração de petróleo em seu país à China, se vê na mira de agentes da CIA – e, em certo instante, ele explica a situação da seguinte maneira a seu conselheiro norte-americano:

“O seu Presidente liga para o meu pai (o Sheik) e diz: ‘Estou com uma alta taxa de desemprego no Texas, no Kansas e em Washington!’. Um telefonema depois e nós estamos roubando de nosso próprio programa social para pagar por aviões superfaturados. (...) Eu aceito a oferta dos chineses, a maior oferta, e de repente sou um terrorista, um comunista sem religião”.

O discurso acima, diga-se de passagem, é feito de maneira espectacularmente incisiva pelo actor Alexander Siddig, que confere ao personagem uma dignidade inquestionável sem cair na tentação de “ocidentalizá-lo”, tornando-o mais sustentável para um público que não compreende uma cultura tão diferente da própria. Aliás, o elenco de Syriana é brilhante: Jeffrey Wright, como o advogado Bennett Holiday, constrói um arco dramático admirável, estabelecendo seu personagem como um sujeito aparentemente idealista que, no entanto, tem uma ambição tão impiedosa quanto a de seus superiores. Enquanto isso, Matt Damon encarna a única figura (além do Príncipe Nasir) cujos princípios éticos se mostram mais firmes, embora ele também demonstre uma visão empresarial impecável (e sua conversa com o Príncipe no deserto, quando este lhe oferece um negócio lucrativo obviamente como compensação por uma tragédia pessoal, é poderoso e inesquecível). E é impossível ignorar a transformação física de George Clooney, que surge como veterano agente da CIA que, depois de décadas actuando como peão em um jogo cujos propósitos obscuros procurava não indagar, comete o erro de finalmente questionar os interesses de seus superiores, tornando-se imediatamente uma ameaça aos sujos burocratas travestidos de espiões que compõem a pavorosa Agência Central de Inteligência.

A galeria de personagens de “Syriana” é enorme. Alguns têm mais tempo de tela, e outros menos, mas todos possuem importância crucial para desenhar o quadro completo que o director deseja passar. Esses personagens narram sete ou oito histórias paralelas, que algumas vezes se interligam (daí o termo “hyperlink movies”) através dos personagens. Há o agente da CIA Bob Barnes (George Clooney) e seu filho adolescente (Max Minghella); o consultor Bryan Woodman (Damon) e sua mulher Julie (Peet); dois príncipes que aspiram ao trono de um país árabe fictício (Akbar Kurtha e Alexander Siddig); o empresário Jimmy Pope (Chris Cooper), dono de uma empresa que detém os direitos de exploração de petróleo no Cazaquistão; o advogado Bennett Holliday (Jeffrey Wright), encarregado de investigar a fusão entre duas empresas do ramo de petróleo; iraquianos pobres que perdem os empregos; e muitos outros, alguns inclusive misteriosos, como Stan (William Hurt), cujo trabalho o filme não especifica.

Incluindo um subtexto curioso sobre as relações entre pais e filhos (Damon e o filho morto; Clooney e o filho frustrado; Wright e o pai alcoólatra e crítico; o Sheik e os filhos em disputa pelo poder), que parecem refletir as relações entre países, corporações e os “civis” presos entre o fogo cruzado, Syriana é um filme espetacular que deve ser admirado por sua ambição política e social. Longe de representar uma experiência emocional, o longa exige do espectador uma dedicação semelhante àquela requerida por obras como Todos os Homens do Presidente e JFK – A Pergunta que Não Quer Calar – e, se você estiver disposto(a) a mergulhar na discussão levantada pela história, será fartamente recompensado(a).

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