1- Durante muitos anos pensei que havia dois países no mundo para os quais, por mais voltas que eu desse à imaginação, não conseguia antever futuro algum: a Índia e a África do Sul. Pois bem, enganei-me: a vida está cheia de surpresas, tanto as boas como as más. A Índia é hoje muito mais do que uma nação emergente: é já uma potência económica imprescindível, crescendo a um ritmo de 10% ao ano e — o que é mais notável para quem conheceu o estado de subdesenvolvimento do país há uns anos — com um crescimento baseado na investigação, na qualificação cientifica e no domínio das novas tecnologias. E a África do Sul, pese os problemas graves que se mantêm, está infinitamente melhor do que todo o continente africano e, sobretudo, conseguiu essa proeza impensável de sair do regime intolerável do apartheid por via pacífica e democrática, evitando a guerra civil e a desforra dos negros contra os brancos, como sucedeu no vizinho Zimbabwe. No Zimbabwe, o racismo negro determinou a expulsão e o confisco de todas as terras dos brancos, conduzindo à ruína alimentar, à fome e à miséria o que fora o mais próspero território agrícola de África. Sob o comando desse criminoso corrupto e sanguinário que é Mugabe (que Sócrates insiste à viva força em deixar vir à cimeira Euro-África de Lisboa), o Zimbabwe transformou-se num quadro de terror e de devastação humana que, mesmo em África, ultrapassa tudo o que é tolerável. A África do Sul, pelo contrário, teve a sorte de encontrar em Nelson Mandela um líder que, em lugar do ressentimento e do ódio, que até seriam compreensíveis, demonstrou, desde o primeiro dia no poder, que buscava antes o perdão, a reconciliação e a prosperidade para o seu país.
O que vimos neste Mundial de râguebi, com o triunfo de uma selecção sul-africana composta essencialmente por brancos e mulatos, não seria, obviamente, possível de acontecer no Zimbabwe. E, infelizmente para o seu povo, que não tem culpa dos dirigentes que tem, o Zimbabwe nunca será conhecido por estas ou outras boas razões e nunca beneficiará, à escala planetária, de uma tão boa promoção como a que a África do Sul ficou agora a dever à sua selecção de râguebi.
O triunfo da África do Sul ensina-nos uma lição que só os ditadores, os racistas e os particularmente estúpidos se recusam a ver: que África não é dos negros, nem dos brancos, como se proclamava até aos anos sessenta, nem dos árabes, como se garantia antes disso. África é dos africanos, independentemente da cor da pele: dos que lá nasceram, lá criaram raízes e lá pretendem morrer. Não há nada mais redutor e idiota do que querer julgar a História à luz dos critérios políticos e de justiça social contemporâneos. Até meados do século XX, a história das nações não foi mais do que a história das conquistas e das derrotas e das sucessivas migrações dos povos a elas associadas. Querer negar que os europeus fizeram e fazem parte de África é o mesmo que negar que os mouros fizeram parte da história da Península ou que os negros de África fizeram, forçadamente, parte da história do Brasil. O que aconteceu, aconteceu porque foi inevitável e até natural, pelos padrões da época. Ser anticolonialista é perceber justamente que o que era natural e tido como legítimo dantes, deixou de o ser depois. Não é pretender ajustar contas com a História, perseguir os que ficaram para trás por amor à terra onde nasceram (e muitas vezes sem outra a que pudessem chamar sua) e transformar a independência conquistada a ferros numa oportunidade espúria para uma vingança fora de prazo, de que os povos autóctones acabam, a maior parte das vezes, por ser as maiores vítimas. Angola, por exemplo, onde estivemos 500 anos, é hoje muito mais abusada e explorada por franceses, americanos ou chineses e com a colaboração do regime local, do que o foi pelos portugueses durante esses cinco séculos. São anticolonialistas e ciosos da sua «independência» para tratarem e mal e de cima (de cima do petróleo) os portugueses; mas já não o são na hora de constituírem as célebres sociedades mistas com as mais gananciosas multinacionais do mundo, fazendo viver a «Grande Família» no mais indecoroso luxo e ostentação, enquanto o povo é tratado como sub-gente. Por aqui se vê como a História tem as costas largas e as verdades adquiridas se transformam tantas vezes em embustes sem pudor.
E há ocasiões assim, em que o desporto subitamente nos mostra que há povos que conseguem viver em paz na diversidade multiracial e em que cada comunidade se sente filha do mesmo país e orgulhosa por o honrar.
2- Hermínio Loureiro completou um ano à frente da Liga de Clubes e foi um ano positivo, em que ele confirmou que vinha para mudar as coisas e trazer ar fresco e um ambiente mais saudável ao ar putrefacto em que se vivia. Não deixa de ser uma ironia reveladora pensar que o presidente do Benfica — auto-nomeado regenerador moral do futebol português — conseguiu a proeza de estar com a Liga e intimamente aliado com ela, quando lá estava Valentim Loureiro, em representação do que de pior o mundo do futebol tinha; e conseguiu estar contra a Liga assim que se ensaiou a sério a sua efectiva regeneração. Não sei se é o desejo de dar sempre nas vistas ou se é fruto de uma grande confusão, ingénua ou deliberada, sobre os fins que verdadeiramente pretende.
Entretanto, uma das inovações que Hermínio Loureiro trouxe foi a Taça da Liga, em moldes de disputa originais e semelhantes ao que várias vezes aqui defendi para a disputa da Taça de Portugal: essencialmente, as primeiras eliminatórias discutidas a uma mão no campo dos mais fracos, e as eliminatórias finais a duas mãos. Para além disso, a Taça da Liga visava preencher um défice de visibilidade e de rendimento financeiro para os clubes pequenos e um défice de competição para os grandes, a braços com plantéis de trinta jogadores, dos quais uma dúzia a fazer vida ociosa, sem aproveitamento algum. Todavia, o que se está a passar com os grandes entre os grandes, ameaça matar à nascença a nova competição. Os profissionais de «segunda linha» de FC Porto, Sporting e Benfica têm demonstrado uma falta de vontade e de sentido de responsabilidade — uma falta de profissionalismo — que é preocupante e ameaça tornar inútil e desprovida de sentido a competição. Julgo que no final desta primeira edição, o presidente da Liga vai ter que se reunir com todos e perguntar-lhes o que verdadeiramente querem: manter todos os seus profissionais em competição durante a época ou desistir de fazer ocupar os excedentários, deixando-os livres para essa vida ociosa de treino pela manhã, salão de tatuagens ou cabeleireiro da parte da tarde.
O que vimos neste Mundial de râguebi, com o triunfo de uma selecção sul-africana composta essencialmente por brancos e mulatos, não seria, obviamente, possível de acontecer no Zimbabwe. E, infelizmente para o seu povo, que não tem culpa dos dirigentes que tem, o Zimbabwe nunca será conhecido por estas ou outras boas razões e nunca beneficiará, à escala planetária, de uma tão boa promoção como a que a África do Sul ficou agora a dever à sua selecção de râguebi.
O triunfo da África do Sul ensina-nos uma lição que só os ditadores, os racistas e os particularmente estúpidos se recusam a ver: que África não é dos negros, nem dos brancos, como se proclamava até aos anos sessenta, nem dos árabes, como se garantia antes disso. África é dos africanos, independentemente da cor da pele: dos que lá nasceram, lá criaram raízes e lá pretendem morrer. Não há nada mais redutor e idiota do que querer julgar a História à luz dos critérios políticos e de justiça social contemporâneos. Até meados do século XX, a história das nações não foi mais do que a história das conquistas e das derrotas e das sucessivas migrações dos povos a elas associadas. Querer negar que os europeus fizeram e fazem parte de África é o mesmo que negar que os mouros fizeram parte da história da Península ou que os negros de África fizeram, forçadamente, parte da história do Brasil. O que aconteceu, aconteceu porque foi inevitável e até natural, pelos padrões da época. Ser anticolonialista é perceber justamente que o que era natural e tido como legítimo dantes, deixou de o ser depois. Não é pretender ajustar contas com a História, perseguir os que ficaram para trás por amor à terra onde nasceram (e muitas vezes sem outra a que pudessem chamar sua) e transformar a independência conquistada a ferros numa oportunidade espúria para uma vingança fora de prazo, de que os povos autóctones acabam, a maior parte das vezes, por ser as maiores vítimas. Angola, por exemplo, onde estivemos 500 anos, é hoje muito mais abusada e explorada por franceses, americanos ou chineses e com a colaboração do regime local, do que o foi pelos portugueses durante esses cinco séculos. São anticolonialistas e ciosos da sua «independência» para tratarem e mal e de cima (de cima do petróleo) os portugueses; mas já não o são na hora de constituírem as célebres sociedades mistas com as mais gananciosas multinacionais do mundo, fazendo viver a «Grande Família» no mais indecoroso luxo e ostentação, enquanto o povo é tratado como sub-gente. Por aqui se vê como a História tem as costas largas e as verdades adquiridas se transformam tantas vezes em embustes sem pudor.
E há ocasiões assim, em que o desporto subitamente nos mostra que há povos que conseguem viver em paz na diversidade multiracial e em que cada comunidade se sente filha do mesmo país e orgulhosa por o honrar.
2- Hermínio Loureiro completou um ano à frente da Liga de Clubes e foi um ano positivo, em que ele confirmou que vinha para mudar as coisas e trazer ar fresco e um ambiente mais saudável ao ar putrefacto em que se vivia. Não deixa de ser uma ironia reveladora pensar que o presidente do Benfica — auto-nomeado regenerador moral do futebol português — conseguiu a proeza de estar com a Liga e intimamente aliado com ela, quando lá estava Valentim Loureiro, em representação do que de pior o mundo do futebol tinha; e conseguiu estar contra a Liga assim que se ensaiou a sério a sua efectiva regeneração. Não sei se é o desejo de dar sempre nas vistas ou se é fruto de uma grande confusão, ingénua ou deliberada, sobre os fins que verdadeiramente pretende.
Entretanto, uma das inovações que Hermínio Loureiro trouxe foi a Taça da Liga, em moldes de disputa originais e semelhantes ao que várias vezes aqui defendi para a disputa da Taça de Portugal: essencialmente, as primeiras eliminatórias discutidas a uma mão no campo dos mais fracos, e as eliminatórias finais a duas mãos. Para além disso, a Taça da Liga visava preencher um défice de visibilidade e de rendimento financeiro para os clubes pequenos e um défice de competição para os grandes, a braços com plantéis de trinta jogadores, dos quais uma dúzia a fazer vida ociosa, sem aproveitamento algum. Todavia, o que se está a passar com os grandes entre os grandes, ameaça matar à nascença a nova competição. Os profissionais de «segunda linha» de FC Porto, Sporting e Benfica têm demonstrado uma falta de vontade e de sentido de responsabilidade — uma falta de profissionalismo — que é preocupante e ameaça tornar inútil e desprovida de sentido a competição. Julgo que no final desta primeira edição, o presidente da Liga vai ter que se reunir com todos e perguntar-lhes o que verdadeiramente querem: manter todos os seus profissionais em competição durante a época ou desistir de fazer ocupar os excedentários, deixando-os livres para essa vida ociosa de treino pela manhã, salão de tatuagens ou cabeleireiro da parte da tarde.