Clara Ferreira Alves, no Expresso
Tudo o que aqui relato é verdade.
Se quiserem, podem processar-me.
Eis parte do enigma.
Mário Soares, num dos momentos de lucidez que ainda vai tendo,
veio chamar a atenção do Governo, na última semana, para a voz da rua.
A lucidez, uma das suas maiores qualidades durante uma longa carreira política.
A lucidez que lhe permitiu escapar à PIDE e passar um bom par de anos num exílio
dourado, em hotéis de luxo de Paris.
A lucidez que lhe permitiu conduzir da forma "brilhante" que se viu o processo
de descolonização.
A lucidez que lhe permitiu conseguir que os Estados Unidos financiassem o PS
durante os primeiros anos da Democracia.
A lucidez que o fez meter o socialismo na gaveta durante a sua experiência
governativa.
A lucidez que lhe permitiu tratar da forma despudorada amigos como Jaime Serra,
Salgado Zenha, Manuel Alegre e tantos outros.
A lucidez que lhe permitiu governar sem ler os "dossiers".
A lucidez que lhe permitiu não voltar a ser primeiro-ministro depois de tão fantástico
desempenho no cargo.
A lucidez que lhe permitiu pôr-se a jeito para ser agredido na Marinha Grande e,
dessa forma, vitimizar-se aos olhos da opinião pública e vencer as eleições
presidenciais.
A lucidez que lhe permitiu, após a vitória nessas eleições, fundar um grupo
empresarial, a Emaudio, com "testas de ferro" no comando e um conjunto de negócios
obscuros que envolveram grandes magnatas internacionais.
A lucidez que lhe permitiu utilizar a Emaudio para financiar a sua segunda campanha
presidencial.
A lucidez que lhe permitiu nomear para Governador de Macau Carlos Melancia, um
dos homens da Emaudio.
A lucidez que lhe permitiu passar incólume ao caso Emaudio e ao caso Aeroporto de
Macau e, ao mesmo tempo, dar os primeiros passos para uma Fundação na sua fase
pós-presidencial.
A lucidez que lhe permitiu ler o livro de Rui Mateus, "Contos Proibidos", que contava
tudo sobre a Emaudio, e ter a sorte de esse mesmo livro, depois de esgotado, jamais
voltar a ser publicado.
A lucidez que lhe permitiu passar incólume as "ligações perigosas" com Angola, ligações
essas que quase lhe roubaram o filho no célebre
acidente de avião na Jamba (avião esse transportando de diamantes, no dizer do então
Ministro da Comunicação Social de Angola).
A lucidez que lhe permitiu, durante a sua passagem por Belém, visitar 57 países
("record" absoluto para a Espanha - 24 vezes - e França - 21), num total equivalente a 22
voltas ao mundo (mais de 992 mil quilómetros).
A lucidez que lhe permitiu visitar as Seychelles, esse território de grande importância
estratégica para Portugal, aproveitando para dar uma voltinha de tartaruga.
A lucidez que lhe permitiu, no final destas viagens, levar para a Casa-Museu João Soares
uma grande parte dos valiosos presentes oferecidos oficialmente ao Presidente da
Republica Portuguesa.
A lucidez que lhe permitiu guardar esses presentes numa caixa-forte blindada daquela
Casa, em vez de os guardar no Museu da Presidência da República.
A lucidez que lhe permite, ainda hoje, ter 24 horas por dia de vigilância paga pelo
Estado nas suas casas de Nafarros, Vau e Campo Grande.
A lucidez que lhe permitiu, abandonada a Presidência da República, constituir a
Fundação Mário Soares. Uma fundação de Direito privado que, vivendo à custa de
subsídios do Estado, tem apenas como única função visível ser depósito de documentos
valiosos de Mário Soares. Os mesmos que, se são valiosos, deviam estar na Torre do
Tombo.
A lucidez que lhe permitiu construir o edifício-sede da Fundação violando o PDM de
Lisboa, segundo um relatório do IGAT, que decretou a nulidade da licença de obras.
A lucidez que lhe permitiu conseguir que o processo das velhas construções que ali
existiam e que se encontrava no Arquivo Municipal fosse requisitado pelo filho e que
acabasse por desaparecer, convenientemente, num incêndio dos Paços do Concelho.
A lucidez que lhe permitiu receber do Estado, ao longo dos últimos anos, donativos
e subsídios superiores a um milhão de contos.
A lucidez que lhe permitiu receber, entre os vários subsídios, um de quinhentos
mil contos, do Governo Guterres, para a criação de um
auditório, uma biblioteca e um arquivo num edifico cedido pela Câmara de Lisboa.
A lucidez que lhe permitiu receber, entre 1995 e 2005, uma subvenção anual da Câmara
Municipal de Lisboa, na qual o seu filho era Vereador e Presidente.
A lucidez que lhe permitiu que o Estado lhe arrendasse e lhe pagasse um gabinete,
a que tinha direito como ex-presidente da República, na... Fundação Mário Soares.
A lucidez que lhe permite que, ainda hoje, a Fundação Mário Soares
receba quase 4 mil euros mensais da Câmara Municipal de Leiria.
A lucidez que lhe permitiu fazer obras no Colégio Moderno, propriedade da família,
sem licença municipal, numa altura em que o Presidente era... João Soares.
A lucidez que lhe permitiu silenciar, através de pressões sobre o director do "Público",
José Manuel Fernandes, a investigação jornalística que José António Cerejo começara
a publicar sobre o tema.
A lucidez que lhe permitiu candidatar-se a Presidente do Parlamento Europeu e chamar
dona de casa, durante a campanha, à vencedora Nicole Fontaine.
A lucidez que lhe permitiu considerar Jose Sócrates "o pior do guterrismo" e ignorar
hoje em dia tal frase como se nada fosse.
A lucidez que lhe permitiu passar por cima de um amigo, Manuel Alegre, para concorrer
às eleições presidenciais mais uma vez.
A lucidez que lhe permitiu, então, fazer mais um frete ao Partido Socialista.
A lucidez que lhe permitiu ler os artigos "O Polvo" de Joaquim Vieira na "Grande
Reportagem", baseados no livro de Rui Mateus, e assistir, logo a seguir, ao
despedimento do jornalista e ao fim da revista.
A lucidez que lhe permitiu passar incólume depois de apelar ao voto no filho, em
pleno dia de eleições, nas últimas Autárquicas.
No final de uma vida de lucidez, o que resta a Mário Soares? Resta um punhado
de momentos em que a lucidez vem e vai. Vem e vai. Vem e vai. Vai... e não
volta mais.
Tendo a implementação da Democracia em Portugal mentores como Mário Soares,
não admira que a versão instalada no país esteja obsoleta. O sistema precisa,
urgentemente, de uma profunda renovação, ou seja, de novos protagonistas.
Obrigado, Clara.