Quando a bolha rebentou e a Irlanda entrou em crise, nem todos tinham dinheiro para pagar os empréstimos. Cerca de 120 mil casas ficaram desocupadas.
Bairros inteiros ficaram à espera de habitantes
Não há ninguém que saia na estação do DART (comboio suburbano) de Clongriffin, vindo de qualquer dos sentidos. Também não há ninguém a trabalhar na estação. Na entrada, avisa-se que só há gente a trabalhar lá de manhã aos dias da semana. Não há assistência a potenciais passageiros durante a tarde, nem aos fins-de-semana. Chegar a este bairro é como chegar a uma cidade do Velho Oeste. Não há movimento. As pessoas como que desapareceram, deixaram a rua principal desimpedida para o duelo ao bater das 12 badaladas.
Mas Clongriffin não é uma cidade do Velho Oeste. É um subúrbio a norte de Dublin, capital da República da Irlanda, e uma das muitas relíquias do boom imobiliário que aconteceu durante os anos em que o país era o Tigre Celta, em que a aparente prosperidade económica fez com que os bancos emprestassem demasiado aos construtores e a quem queria comprar casa. Quando a bolha rebentou nos EUA em 2007-2008 e a Irlanda, tal como o resto do mundo, entrou em crise, nem todos tinham dinheiro para pagar os empréstimos e muitos empreendimentos nunca chegaram a ser completados. Na Irlanda, existem centenas de bairros destes, semiconstruídos e quase abandonados. Chamam-lhes ghost estates, os bairros-fantasmas.
No papel, Clongriffin seria o subúrbio perfeito para quem não quisesse morar na cidade. Um bairro feito de raiz, com todas as infra-estruturas sociais e comerciais, a menos de meia hora de distância do centro da capital, com bons transportes e bons acessos. "Esta nova zona urbana incorpora design urbano de ponta, criando um bairro residencial de estilo europeu", diz um panfleto colado na estação e que conta a história do bairro.
A realidade é muito diferente. Mesmo com a abertura da estação do DART em 2010 (que custou 22 milhões de euros), o bairro não ganhou a vida que se desejava. As pessoas não foram para lá e o comércio também não. Uma das poucas lojas abertas na rua principal era a farmácia, mas até essa fechou esta semana. "Com a falta de desenvolvimento em Clongriffin, temos estado a sobreviver no limite há demasiado tempo. É impossível continuar", justificava Anne McNeill, proprietária da farmácia, numa nota publicada no fórum dos habitantes de Clongriffin na Internet.
A farmácia vai ser, assim, mais uma das muitas lojas sem ninguém ao longo da Main Street, em que se entra após sair-se da estação do DART. Os visitantes são recebidos por um parque de estacionamento vazio (e grátis) em que nem os elevadores funcionam. Um edifício envidraçado, que estaria pensado para um centro comercial e para escritórios, está fechado e não parece que vá abrir tão cedo.
"Coming soon" é o aviso que está na porta de um talho, de um restaurante, de uma mercearia e de um centro comercial.
São andares térreos, preparados para comércio, que, por dentro, são paredes de cimento, como se tivessem acabado de ser construídos. Mais à frente, um cabeleireiro, onde trabalha uma emigrante da Letónia que lamenta a falta de negócio, mas que diz que é um bom sítio para se viver.
O único supermercado da zona, que faz parte da cadeia Centra, é o um dos poucos locais onde ainda se vê algum movimento, numa rua onde há poucos carros estacionados e os autocarros circulam sem ninguém.
A paisagem urbana é complementada por um parque, com relvados extensos, um circuito de manutenção e um campo de futebol com balizas sem redes. Apenas três presenças, um homem em fato de treino a fazer exercício, uma mulher que passeia o filho num carrinho de bebé e um jardineiro que apara a relva. Nenhum deles quer falar.
Do outro lado da rua, o escritório onde alguém deveria estar a vender apartamentos está fechado e ostenta um painel amassado e esburacado que convida quem passa a fazer parte "de uma nova cidade" em Dublin. Voltam os prédios dos dois lados, construções novas com um aspecto velho, e a rua termina bruscamente com uma parede baixa de contraplacado que esconde mal os destroços que estão do lado de lá, de casas que nunca o chegaram a ser.Também são visíveis os sinais de empreendimentos que ficaram pela fase de projecto. Os lotes de terreno estão perfeitamente delimitados e à vista, mas a construção nunca avançou. Ainda lá estão os prefabricados que iriam alojar os trabalhadores, a terra foi remexida para as fundações dos prédios. É que não foram apenas os compradores que sofreram com a crise. As construtoras e as imobiliárias também pediram empréstimos aos bancos e, quando veio a crise, já não tinham liquidez para sustentar os seus empreendimentos e foram à falência.
Estima-se que, na Irlanda, existam, pelo menos, 120 mil casas desocupadas, consequência do empréstimo fácil a construtores e particulares durante os anos de abundância. Estes são os números oficiais, embora existam estudos que falam de mais de 300 mil. "O problema é que o preço do imobiliário subiu e subiu e subiu e subiu. Quando os bancos entraram em colapso, os preços baixaram de forma drástica. Em seis meses, tudo ficou desvalorizado, casas, escritórios, propriedades. As pessoas não conseguiam pagar os empréstimos e as hipotecas. Muita gente perdeu o emprego. Aconteceu tudo demasiado rápido. Mais do que a dimensão da crise, foi isso que chocou as pessoas,", explica Emmet Oliver, jornalista de economia do Irish Independent.
Entre 2000 e 2006, os preços e as rendas das casa na Irlanda duplicaram, e um quinto do PIB do país vinha do sector imobiliário (incluindo vendas de casas em segunda mão). Morgan Kelly, professor universitário, já avisava, no Irish Times em Dezembro de 2006, que os irlandeses iriam sofrer num futuro próximo: "Passámos os últimos cinco anos a pensar que as exportações e a competitividade não interessam, e que podíamos enriquecer a vender casas uns aos outros."
Clongriffin é um exemplo urbano do que correu mal no boom imobiliário irlandês. A longo prazo, e por estar perto de Dublin, provavelmente este bairro/cidade irá ter uma maior taxa de ocupação, mas o verdadeiro problema está nas zonas rurais, cuja paisagem foi sendo carregada com empreendimentos a pensar naqueles que queriam segundas casas longe das cidades.
"Pensávamos que tínhamos dinheiro. As pessoas gastavam muito, compravam carros de luxo, casas grandes e mais do que uma, champanhe, iam duas e três vezes de férias por ano, quase sempre para o estrangeiro. Havia muita gente que queria vir para o estrangeiro. E os nossos investidores compravam as grandes cadeias de hotéis. Estávamos por todo o lado", recorda Emmet Oliver. Estes eram os dias da abundância.
Em 2008, a economia irlandesa entrou em recessão. O desemprego subiu de cinco para 14 por cento, e, entre estes novos desempregados, muitos vinham da construção civil. A emigração aumentou, principalmente para países como a Inglaterra e a Austrália, e muitos dos imigrantes regressaram aos seus países. Menos gente para comprar casas, portanto. Ficaram os bairros-fantasmas, um problema para o qual o Governo criou uma comissão.
A demolição de alguns destes empreendimentos que se vão degradando está a ser ponderada. Outra hipótese é a de transformar alguns destes bairros em habitação social.
Perto de Clongriffin, mas também servida pela mesma estação de comboios, fica a zona de Belmayne, que se divide em vários empreendimentos. O stand de vendas também não está operacional. O que era suposto ser o andar-modelo para atrair potenciais clientes está fechado. "Abra a porta para uma grande oportunidade de negócio" é o que está escrito numa porta fechada a cadeado. As paredes de vidro do stand permitem ver papéis espalhados no chão e móveis virados. O pequeno lago no jardim está cheio de musgo e nele repousa um triciclo. Entre Belmayne e Clongriffin, escrevia o Irish Independent no início do ano, existiam cerca de 1400 casas construídas por ocupar.
Mas este condomínio não é dos que estão mais abandonados. Pelo menos é o que diz o manager do espaço, que aceita falar com o PÚBLICO mas que prefere não ser identificado. O stand de vendas, diz, é de outro empreendimento e está fechado há algum tempo. Ele só mantém as aparências do local e corta a relva de vez em quando. Aquele bairro não é um ghost estate, observa, acrescentando que, das 400 casas que estão a seu cargo, apenas 30 estão desocupadas, e que a empresa que as construiu é daquelas que sobreviveram à crise e mantêm liquidez. Mas sim, há muitos bairros vazios na Irlanda, admite o manager de Belmayne. "Os irlandeses têm muito a tradição de serem proprietários das suas casas", acrescenta.
Conrad Hicks, reverendo da igreja metodista, que se mudou para Belmayne há três anos com a mulher e os filhos, também contraria o aspecto vazio da rua onde mora. Inglês, de Nottingham (e um bigode muito parecido com o de Errol Flynn quando foi o mais famoso Robin Hood do cinema), Hicks tem dado voltas pelo mundo e esteve exposto a várias situações de pobreza extrema, nomeadamente na América do Sul.
A sua congregação tem crescido nos últimos tempos, principalmente devido aos refugiados de países onde a igreja metodista é mais forte - a Irlanda é maioritariamente católica, os metodistas são 53 mil numa população total de 4,5 milhões de irlandeses - e chegou à Irlanda quando este ainda era um país próspero.
"É um bom bairro e tem poucas casas vazias. Vivemos bem aqui e estamos perto da nossa igreja", diz o reverendo, que vai almoçando - um ovo estrelado em cima de um pão torrado - enquanto fala. "Peço desculpa por não ser um bom entrevistado, mas isto não é um ghost estate", acrescenta Hicks. Mas ele sabe que, ali perto, há bairros inteiros vazios. "Para aquele lado", aponta.
Cerca de 200 metros à direita, outro empreendimento em Belmayne, um bairro perfeito, alinhado, de vivendas todas iguais, sem extravagâncias arquitectónicas. As casas têm um ar novo, acabado de construir e nos terrenos em frente ainda estão alguns restos de materiais de construção, tijolos, tubos e pedaços de betão armado.
É um ideal de vizinhança, daquela que se vê nos filmes, com sebes e relvados aparados, onde se pode fazer jogging e andar de bicicleta, onde os vizinhos se conhecem todos pelo nome e podem criar um verdadeiro espírito de comunidade. Só que não há ninguém. Ou quase ninguém.
Dois sinais revelavam as casas ocupadas: são as que têm caixote do lixo e carro à porta. Ruas inteiras em que uma casa em cada 20 tem gente lá dentro. As pessoas que abrem a porta não estão interessadas em explicar as razões por que vivem ali. "Temos tido muitos jornalistas por aqui. Não tenho tempo. Fale com o meu vizinho", diz uma senhora. Seis casas à frente, o vizinho dá uma resposta semelhante.
Mas as histórias não devem andar muito longe do padrão. Os bancos a fazerem não só avaliações que sobreavaliavam os imóveis, como também a gerar o apetite por empréstimos adicionais, em alguns casos 110 por cento do preço das casas, para outras despesas que fossem necessárias. Depois do crash, prestações demasiados pesadas para suportar de um investimento que nunca iriam rentabilizar - nesta situação estima-se que estejam cerca de 200 mil irlandeses. As casas nunca mais irão valer o mesmo e ter como vizinhança carcaças de prédios que nunca serão acabados só desvaloriza as propriedades.A relva frente às casas continua impecável. O único movimento naquela tarde era o da camioneta de uma empresa de jardinagem para tratar da vegetação, ordem da construtora, que ainda está solvente e que investe na manutenção das casas enquanto não as consegue vender.
As caixas de correio estão cheias de publicidade, entre serviços de canalização e ementas de take away. Neste bairro vazio, o Di Angelo"s insiste em promover entregas ao domicílio e preços baixos nos seus hambúrgueres, frango e peixe frito. E faz catering para festas.
|in Público|
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