Vivemos um tempo difícil, em que as incertezas internacionais e os nossos velhos vícios se combinam de forma explosiva. É tal a crise que já temos saudades dos dias em que se dizia que o país estava de tanga. Os pobres continuam a pagar a crise, porque já estão habituados a isso, como me dizia um amigo, especialista em humor negro, e que por isso não pode ser levado a mal. Mas, desta vez, os pobres não estão sozinhos. A classe média, a mais perseguida no vértice inclinado para onde a nossa sociedade escorrega, tenta encobrir-se com a última parra da videira, para esconder a desilusão por um amanhã que, cantado por trovadores parolos e por vendedores da banha da cobra, se transformou num pesadelo sem fim à vista. Prova disso é que, todos os dias encontramos amigos que estavam bem na vida, que aparentavam fartura, e que agora nos dão conta das suas aflições. Gente que comprou carros de luxo e que os teve de devolver aos "leasing", que se empenhou até ao tutano para adquirir vivendas e andares cujos custos de financiamento manutenção são incomportáveis, que se deixou seduzir pela "oferta" de cartões vendidos em centros comerciais e cedeu à gula do consumo, sentindo-se agora espoliada porque derreteu, livremente, as poupanças, em coisas tolas.
Ao contrário da crise de 1983, esta crise não é passageira. Não há uma esperança europeia, faltam as oportunidades e as saídas. O emprego deixou de estar garantido para a vida, a não ser para alguns privilegiados que sustentam os partidos que, a troco disso, defendem uma Constituição inviável. Esses últimos direitos adquiridos dividem os portugueses entre aqueles que têm esse estatuto e os muitos que estão sujeitos às regras da economia privada, a que se somam os mais jovens que, nada tendo feito para este estado de coisas, ainda suportam uma pesada discriminação geracional. Nunca, como hoje, se traficaram os "curriculum vitae" do filho, da sua namorada e da enteada. Acumulam-se, nessas inúteis listas, cursos de duvidosa qualidade que, também, eles, fizeram parte do que nos foi impingido, e que o Estado patrocinou.
Entretanto, o Estado resiste, impenitente, guardado por aqueles que ainda têm os tais direitos adquiridos. E, enquanto o cidadão acreditar que ele tem como missão a redistribuição da riqueza, e não compreender que é um filtro entupido, que retém muito mais do que aquilo que consegue repartir, esse Estado e a sua nomenclatura continuarão a reinar sobre todos nós. A equação é simples porque, para cada Euro que lhe falte para as suas funções, extorquir-nos-á três, desperdiçará a metade da receita em folestrias, e devolver-nos-á meio. Esse meio que sobra é-lhe útil, pois garante uma clientela que, por sua vez, e somada à nomenclatura, assegura a este Estado, dito providência e social, a tranquilidade no negócio, porque para além de socorrer os que estão mesmo aflitos, também alimenta a traficância da preguiça que esgota rendimentos mínimos no café, pagando a torrada com manteiga e o galão, o maço de cigarros e os direitos inerentes e adquiridos.
Espera-se, neste aperto, que sejamos capazes de reagir e de resolver estes desequilíbrios. Seria expectável, nesta conjuntura, que todos percebêssemos que isto não pode continuar. Foi isso o que nos disse, de forma contida e desassombrada, o Ministro das Finanças: É inevitável mudar de vida. O problema é que está tudo contaminado pelas cumplicidades, dessa teia cada vez mais alargada, em que afogamos os nossos pecadilhos. É por isso que num editorial anónimo de um grande jornal, se lê que estamos a adoptar o modelo americano, como se fosse isso que está em causa. Na verdade, o único e estreito caminho que ainda resta, se quisermos preservar alguns dos direitos que hoje estão ameaçados, e que pouco interessa se estão contidos na Constituição que nunca resistirá à falência do país, é encontrar um pacto social de longo prazo, em que os direitos correspondem a deveres, e em que a única coisa que é adquirida é a obrigação de fazermos todos o melhor pelo país.
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