Ontem de manhã, numa conferência, ouvi um palestrante vindo de Lisboa congratular-se com a possibilidade estar no Porto porque era "uma forma de sair da bolha". Revelando consciência crítica, disse mais: "Basta olhar para os acontecimentos dos últimos dias, para perceber que o devíamos fazer mais vezes".
Sim, para estar com o país que ardeu no domingo e na segunda-feira, é preciso sair da bolha que se forma naturalmente num dos estados mais centralistas da Europa. É preciso romper com esse manto isolante criado pela concentração de gabinetes governativos, institutos públicos, sedes partidárias, empresas, comunicação social, que invariavelmente têm a sua sede na capital. E não é fácil sair desse circuito fechado.
Se fosse, se os nossos governantes tivessem saído dos corredores do ar condicionado, teriam percebido que um país despovoado, com a floresta abandonada, atormentado pela seca, sujeitado às alterações climatéricas, com um sistema de Proteção Civil que mostrou a sua inoperância em Pedrógão Grande, era um desastre iminente. Teriam tomado a consciência de que não bastava adiar decisões à espera de um relatório, que era necessário assumir o estado de emergência que as circunstâncias exigiam.
Mas não deve ser fácil sair da bolha, quando nos dizem que a economia corre bem, que somos um exemplo na Europa, que ganhamos eleições e desbaratamos a oposição, que fechamos um Orçamento de Estado sem grandes dificuldades. Rodeado de tanto sucesso, António Costa não conseguiu sair da bolha na madrugada de segunda-feira, quando deu uma conferência de imprensa desconexa e irritada, nem quando falou ao país depois de se saber da dimensão das perdas humanas. Já Marcelo sabe e mostrou-o com clareza ao primeiro-ministro, ganhando um ascendente político que o tempo nos dirá como vai usar.
Mesmo agora, é difícil ajuizar se o primeiro-ministro consegue pensar fora da bolha, pois fez uma escolha, para substituir a ministra que havia sequestrado, que parece ainda mais concêntrica, mais igual a si próprio. Eduardo Cabrita pode ser um governante experimentado, detentor dessa qualidade intangível que é o "peso político". Mas todos nós ficaríamos bem mais descansados se, ao deixar de ser ministro-adjunto, ele tivesse conseguido concluir a reforma da descentralização, em vez de deixar uma história de propostas e recuos, pontuada por grandes discursos, que está muito longe de ter mudado alguma coisa de substancial. Já levava com ele o primeiro passo do muito que há a fazer se conseguirem ver para lá da bolha. [ David Pontes, no JN - negritos e sublinhados meus ]
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