Nasceu como padaria em 1906 e está num edifício emblemático projectado pelos arquitectos Victor Palla e Bento d’Almeida desde os anos 70. Ir ao restaurante e confeitaria Cunha “é quase uma tradição”. Mas uma ordem de despejo pôs-lhe o futuro interrogado.
Comer ao balcão era uma novidade quando a Cunha abriu
Edifício foi construído em 1939
Conta Fernando Ferraz que ouviu repetidas vezes o conselho em tom de súplica do arquitecto Siza Vieira. Quando visitava o restaurante e confeitaria Cunha, o Pritzker português sentava-se sempre na mesma “ilha de sofás", na sala dos balcões do emblemático e histórico espaço portuense. Desenhava nos individuais de papel, enrolava-os. Pedia mais, voltava a desenhar e a enrolar. E então, volta e meia, ao admirar aquela obra arquitectónica, não deixava de lhe dar uma palavrinha.
— Você nunca mexa nisto, nunca mude esta casa.
Fernando Ferraz, proprietário do espaço centenário desde 1992, sorria. “Certamente que não”, respondia-lhe.
Nunca tal lhe tinha, de facto, passado pela cabeça. Até que, “há uns 15 dias”, uma carta completamente inesperada lhe entrou no correio como um pesadelo. O proprietário do edifício Emporium, construído em 1939 pelo arquitecto Arthur de Almeida Júnior na esquina de Sá da Bandeira com a Rua de Guedes de Azevedo, deu ordem de despejo à Cunha. Fim da linha: 30 de Abril. Planos para o local? “Provavelmente alojamento temporário. Mas não sei...”
A revolta é grande. Há uns três ou quatro meses, os proprietários — que segundo Fernando Ferraz tinham adquirido o edifício em Março — tinham-no chamado para lhe comunicar que era desejo deles que a Cunha permanecesse no espaço, independentemente dos planos para os restantes quatro pisos. Mas depois veio a carta, “uma verdadeira bomba”. E a reacção de Ferraz. Esta quarta-feira, fez chegar à autarquia um pedido para integrar o “Porto de Tradição”, um programa que confere protecção especial contra despejos ou encerramentos forçados. É nessa jogada que está, para já, a depositar todas as esperanças. Se for preciso, outras medidas virão. “Não estou disposto a desistir, de forma nenhuma.”
Não haverá muita gente na cidade que se recorde da Cunha original. Aberta a 31 de Março de 1906 na Rua de Santa Catarina (números 520, 522 e 524), junto à Capela das Almas, a casa era inicialmente uma padaria e pertenceria à “família dos Bonitos”, cujos descendentes continuam a ter casas de fabrico de bombons artesanais. “Pão podre doce, tostas doces”, lê-se numa fotografia antiga da fachada onde morava um enorme letreiro com o nome da loja (“Padaria Cunha”) e a descrição de outros serviços ali instalados: confeitaria, mercearia, vinhos finos, azeite. Nos anos 30, quando muda de instalações para um espaço no outro lado da mesma rua, a Cunha consagra-se definitivamente como confeitaria. O bolo-rei já era imagem de marca.
“Ainda é”, assegura Fernando Ferraz. As filas em vésperas e dia de Natal eram coisa para sair porta fora e deixar a rua em reboliço. O fabrico era — ainda é — 100% caseiro. Pão, pastelaria fina, bombons. No restaurante, mais recentemente, as francesinhas, os míticos (e grandes) copos de sangria, o buffet diário. Comida “tradicional e caseirinha”.
Mas nem só de restauração se fala quando o assunto é a Cunha. No edifício Emporium — onde nos pisos superiores há habitações e escritórios —, foram os arquitectos Victor Palla e Bento d’Almeida quem projectou, no piso térreo, a confeitaria e restaurante Cunha. A dupla tinha-se mudado para a cidade em 1946, encantada pela menos conservadora escola de arquitectura do Porto, e ali fundou um atelier onde se desenharam edifícios emblemáticos, com o pensamento num novo modo de vida. Foram eles quem importaram da América os snack-bares: comer ao balcão, em contacto directo e próximo com o empregado, era à época uma novidade absoluta.
Alcatifa no chão, balcão em madeira robusta, bancos altos e forrados assentes numa base de granito nobre, candeeiros clássicos. As “ilhas de sofás”, com privacidade extra, um imponente painel de azulejos. Dos vários snack-bares de estética coerente criados pela dupla, só a Cunha e o Galeto, em Lisboa, sobrevivem. Mas o da capital já está classificado pelo Instituto Português do Património Arquitectónico.
O que aqui se passou...
Não havia vez que visitasse o Porto e não passasse por ali. Fernando Ferraz tem à frente uma longa lista de nomes de personalidades conhecidas que se fizeram clientes da sua casa. E vai à memória desencantar uma das histórias que mais o encanta. Andava a Rua Sá da Bandeira em obras, a chuva era corpulenta e Mário Soares entra pela confeitaria. “Estava com os pés cheios de lama. Nem sabia o que dizer. Ele explicou-me que se a mulher sabia que vinha ao Porto e não lhe levava os nossos bombons ficava chateada”, recorda a sorrir.
Nos sofás da Cunha, que teve uma sucursal durante pouco mais de um ano na Rua da Venezuela, fizeram-se muitas reuniões políticas. Vários negócios de jogadores. Quando o fecho do Jornal de Notícias e outros diários era tardio, era ali o repouso de jornalistas ao fim da noite. E havia os artistas, vindos do Coliseu, do Rivoli, do Teatro Sá da Bandeira. Muitas noites, as portas fechavam pelas duas da manhã e eles continuavam, em “enorme cavaqueira”. Na baixa da cidade, durante muitos anos, aquele era dos poucos lugares abertos até horas “impróprias”.
O hábito não desapareceu — “sempre que há espectáculos os artistas vêm cá, o Pinto da Costa também, políticos. O próprio presidente da Câmara do Porto”, exemplifica Fernando Ferraz, nascido em Baião mas a viver no Porto desde menino, mais ou menos pela altura que começou a trabalhar na Arcádia.
É a Rui Moreira que agora apela. A mensagem é simples: “Mantenham o turismo, mas não nos tirem a nós”, resume, “a nossa gente é a nossa gente, os de fora podem vir e ir, ser apenas um ciclo”. O cansaço atacou-o por estes dias. Mas não há fadiga que lhe esvazie a esperança. “Aqui, as pessoas sabem que estão num sítio com história. Vir à Cunha é quase uma tradição.” [ daqui ]
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