Mateus: uma questão de ética e desportivismo Apesar de tudo, o futebol funciona muito melhor que a justiça (em particular a justiça portuguesa) e não pode, sob pena de morrer rapidamente, ficar sujeito aos prazos, formalismos e ambiguidades da justiça comum JÁ a semana passada tive ocasião de aqui escrever que o Gil Vicente está muito bem assessorado na sua persistente e talvez suicida demanda no chamado caso Mateus. Esses apoios e a aparente solidez das suas argumentações poderão levar os sócios e simpatizantes do Gil a imaginarem que têm a razão por seu lado mas o mundo inteiro contra si, por injustiça ou com idade. Eu, no lugar deles, tentaria, porém, ver as coisas com mais calma e distância, não deixando que a floresta das ambiguidades jurídicas impedisse de distinguir o essencial. O essencial não é saber se o Gil Vicente tem razão jurídica — (e, a meu ver, não a tem) — mas se tem razão do ponto de vista ético-desportivo. Porque o Gil Vicente não é uma sociedade de advogados nem um fórum de jurisconsultos, nem sequer uma empresa em litígio com o Estado devido a um acto administrativo. O Gil Vicente é um clube desportivo, cuja finalidade última é praticar desporto, entrar em competições segundo as respectivas regras e ser aceite de acordo com o comportamento de cavalheiros que, mesmo de forma longínqua, deve estar presente em todas as competições e todo o comportamento dos praticantes desportivos. Tanto quanto sei, o Gil Vicente está no desporto para competir e não para mudar, por via judicial, as regras das competições em que entra e que previamente aceitou. De nada lhe servirá—muito trabalho, muita discussão e muito tempo depois— ver um tribunal reconhecer-lhe razão jurídica, se essa vitória extrafutebol o desacreditar perante todo o país desportivo e o tornar um clube indesejado entre os seus pares. Como sabemos, o Gil é acusado de duas coisas, cuja validade contesta: —inscrever um jogador como profissional, quando, de acordo com o regulamento em vigor, não tinha ainda decorrido um ano sobre a sua inscrição como amador, só então podendo passar a profissional e jogar na Superliga; — ter apelado da decisão federativa que lhe negou a inscrição para os tribunais comuns, voltando a fazê-lo, quando nova decisão o relegou para a Liga de Honra. Em relação à primeira acusação, diz o clube de Barcelos que se trata de uma norma que limita a liberdade de trabalho. Penso que não tem razão alguma, nem jurídica, nem moral. Não é uma regra que limita a liberdade de trabalho, é apenas uma regra que estabelece uma das condições para se ser praticante federado de futebol profissional. Existem regras semelhantes em todos os desportos e, por maioria de razão, para profissionais. Ninguém pode, invocando a liberdade de trabalho, querer entrar no América’s Cup sem ter a carta de patrão de altomar e licença de competição em alto-mar, e ninguém pode correr na Fórmula 1 sem ter a Super Licença Desportiva. Mas é do ponto de vista ético que o comportamento da direcção do Gil Vicente é ainda mais reprovável. O clube contratou um jogador que sabia não poder ser inscrito desde logo como profissional. O Gil não ignorava o regulamento, aprovado pela Liga de clubes, de que faz parte, e que se integra num conjunto de regras essências para que haja competição em igualdade de circunstâncias, regras essas por todos assumidas voluntariamente. Pode-se discutir — em sede própria, que é a assembleia geral da Liga—se a regra é justa e se deve ou não manter-se. O que não se pode é fazer o que o Gil fez: sem nunca ter posto em causa tal regra na Liga, resolveu atacá-la quando tal lhe deu jeito, recorrendo para tal aos tribunais comuns, com isso visando obter um tratamento de excepção em relação a todos os outros clubes. E, para mais, fê-lo através de uma batota que em nada o dignifica, que foi a de fingir que tinha sido o jogador e não o clube a recorrer a tribunal, para defender a sua liberdade de trabalho. Por mais doutos pareceres jurídicos que consiga arregimentar a seu favor, nenhum conseguirá o milagre de lhe salvar a face em tal comportamento. A segunda acusação que pende sobre o Gil Vicente é a mais controversa: a da impossibilidade de recurso à justiça comum. Sobre isto, o Gil Vicente defende-se de duas formas. Por um lado, dizendo que não se trata de matéria estritamente desportiva, mas sim laboral: já vimos que o não é, salvo melhor opinião. Por outro lado, recorrendo à bomba atómica, ou seja, contestar o princípio em si mesmo da proibição de recurso à justiça comum em matérias do âmbito desportivo. Éaqui que alguns dos seus defensores já esfregam as mãos de contentes na perspectiva de um novo caso Bosman que volte a abalar o princípio da auto-replicação das entidades que gerem o futebol mundial . E é aqui também que a FIFA se mete ao barulho, ameaçando também com a sua bomba atómica, que é a suspensão das representações portuguesas nas competições internacionais — castigo que, diga-se, é totalmente absurdo e injustificado. Muito embora eu também seja, em muitas coisas, um crítico da prepotência da FIFA e da UEFA, devo dizer que, nesta matéria reconheço toda a razão de ser da sua intransigência. Ao contrário do que, em defesa do Gil escreveu o professor de direito de Coimbra, João Leal Amado, eu penso que aquilo a que ele chama «a submissão do poder desportivo ao direito» seria uma má notícia e não uma boa. Uma coisa é garantir que o futebol vive dentro da legalidade empresarial, fiscal, administrativa, etc. Outra coisa é impor que aquilo que apenas diz respeito ao futebol — como as regras de organização e de competição — passe a estar sujeito ao crivo da justiça. Porque a competição desportiva é, como disse, uma associação voluntária de equipas, países ou praticantes, que escolhem e têm o direito de escolher as próprias regras com que querem competir, sem que venham os omnipresentes juristas dizer-lhes que isso é ilegal, inconstitucional ou contrário ao direito comunitário. Depois, porque, apesar de tudo, o futebol, nomeadamente, funciona muito melhor do que a justiça (em particular a justiça portuguesa), e não pode, sob pena de morrer rapidamente, ficar sujeito aos prazos, formalismos e ambiguidades da justiça comum. Aliás, uma das coisas que funcionam mal no futebol entre nós — como o caso Mateus amplamente demonstrou mais uma vez—é a incompetência funcional dos juízes que habitam na justiça desportiva. E a estes guardiães do templo jurídico convém recordar que o tão louvado caso Bosman, onde a UE triunfou sobre a UEFA, não melhorou o futebol, piorou-o: permitindo a utilização sem limite de jogadores comunitários e aparentados por qualquer equipa, veio, obviamente, favorecer os clubes ricos dos países ricos, com isso distorcendo a concorrência e falseando a competição. PS: Eu sei que a coerência não abunda entre os nossos dirigentes, mas às vezes a falta de coerência confunde-se com a falta de pudor. É o que constato quando oiço o presidente do Nacional, Rui Alves — cuja providência cautelar interposta no tribunal administrativo impediu a nova direcção eleita da Liga de entrar em funções — vir acusar Valentim Loureiro de «se querer perpetuar no lugar». Ou quando oiço o presidente do Benfica, que defendeu (e praticou) que era mais importante ter o poder na Liga do que uma boa equipa para o campeonato, vir agora dizer que a Liga não serve para nada. Ou quando oiço o cidadão Luís Filipe Vieira indignar-se porque um jornal escreveu que ele ia ser constituído arguido num processo-crime, vir exigir todos os dias a condenção sumária, judicial e extrajudicial, dos que ele quer ver implicados no processo Apito Dourado, dos quais nenhum foi ainda confrontado com qualquer acusação de que se possa defender nem provas que possa contestar — excepto parte escolhida de supostas escutas telefónicas, não validadas nem autenticadas, saídas nos jornais sem direito de defesa, e o tal «nojento dossier» que Luís Filipe Vieira diz ter recebido anonimamente na tal casa onde «só três ou quatro pessoas» sabem que ele mora e que, não se percebe porquê, não entrega à polícia.
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